A Geração On Demand

Recentemente foi divulgado na imprensa que a Rede Globo tem tomado algumas medidas meio radicais de contenção de gastos. Após rever e até rescindir diversos contratos com alguns de seus astros e estrelas, as novas medidas afetaram até mesmo alguns pequenos mimos como manicures e motoristas para os artistas.

Algumas razões têm sido aventadas para explicar a situação de aperto em que se encontra a emissora que sempre foi “campeã de audiência”. Além dos problemas com a concorrência, que têm afetado justamente sua posição de liderança, a emissora também tem sofrido os impactos do cisma social desencadeado pelas disputas políticas das alas à direita e à esquerda do espectro político. Ambos os lados da polarização acusam a emissora de colocar sua grade de programação a serviço do inimigo, e isso tem afastado os antigos telespectadores que, por essa razão, acabam procurando a Rede Record ou o SBT, como alternativas. Até mesmo o corte de verbas de publicidade do governo federal tem sido apontado como hipótese para a redução do orçamento da emissora.

Há, entretanto, uma razão que tem sido pouco apontada como possível causa do declínio da emissora. E, na minha opinião, a razão ignorada é justamente a principal: a cultura do vídeo on demand.

Não faz nem uma década quando vivi, pela primeira vez, a experiência de poder escolher o que eu queria assistir, e a hora que eu queria assistir, durante um vôo entre São Paulo e Lisboa. Até então havia uma programação de entretenimento igual para todos os passageiros e eu vivia bastante bem com isso. Fiquei muito empolgada com a novidade, apesar da dificuldade inicial que enfrentei para escolher o que eu queria assistir. Eu simplesmente não estava acostumada a fazer escolhas, a tomar decisões em relação ao que iria assistir. Eu estava perfeitamente adaptada à minha condição de consumidora passiva da seleção feita por algum especialista em entretenimento.

Mas não demorou muito até que essa tecnologia chegasse às nossas casas. A Netflix talvez seja a empresa que mais tenha popularizado o vídeo on demand via streaming no Brasil e no mundo. Apesar de ter iniciado o serviço em 2007, em maio de 2018 ela passou a ser a maior empresa de entretenimento do planeta, superando a Disney, e hoje já conta com, pelo menos, 139 milhões de assinantes. Apesar de seus números serem impressionantes, hoje ela é apenas mais uma nesse imenso mercado, que já conta com outras gigantes, como a Amazon Prime e a HBO Go, dentre outras. Isso para não mencionar concorrentes gratuitos, como o YouTube.

Não faz muito tempo, passei uma tarde sozinha na casa da minha filha, e fiquei aflita quando percebi que não teria a companhia da televisão, simplesmente porque ela não tem antena para os canais abertos, e nem mesmo uma assinatura de TV a cabo. Minha filha de 20 anos é uma autêntica representante da geração que aboliu completamente a ideia de ter acesso a uma programação controlada por uma emissora de televisão, e investiu apenas em um Google Chromecast, um pequeno aparelho que possibilita que ela assista, na tela da TV, o conteúdo que é exibido na tela de seu celular ou notebook. Dessa forma ela pode assistir aos seus filmes e, principalmente, às suas séries, que são as únicas coisas que lhe interessam, de fato.

Enquanto eu acho muito estranho alguém não ter TV em casa (porque o que eu entendo por TV é a programação da TV aberta), ela acha ainda mais estranho que alguém perca tempo assistindo uma programação aleatória, que ela não escolheu, extremamente limitada em termos de oferta de conteúdo, e rígida em termos do horário em que se pode assistir àquilo que, eventualmente, se queira. Racionalmente eu não posso discordar dela. É realmente uma estupidez ficar dependendo da grade de programação tamanho único, determinada unilateralmente por uma emissora, ou por um conjunto de emissoras, quando se tem tantas opções. No entanto eu estou tão condicionada a esse modelo, que simplesmente não sinto vontade de escolher o que vou assistir na maior parte do tempo. Eu me acomodei nessa posição de receptora passiva. O problema é que a minha, talvez seja a última geração de telespectadores de TV aberta. É uma tendência. É um caminho sem volta.

Voltando à Rede Globo, apesar de seu esforço com a Globoplay, talvez ela tenha perdido o timing para entrar nesse mercado. Vamos acompanhar. Mas, de qualquer forma, a TV aberta, como conhecemos, está com os dias contados. A queda na audiência tende apenas a se agravar. Mesmo suas concorrentes, que podem até estar comemorando um pequeníssimo crescimento em sua audiência, não deveriam se empolgar. Embora eu não me sinta confiante para fazer uma previsão em termos de prazo, eu não hesito em afirmar que a TV não sobreviverá no formato tradicional.

Mas esse fenômeno, que está abalando de forma definitiva as estruturas da maior fonte de entretenimento da população, se reflete também em outras áreas. E a Educação é uma delas.

A geração on demand, que tem total controle sobre o conteúdo que deseja acessar e sobre o ritmo, a frequência e a direção da exibição (hands on), na porção adequada aos seus anseios (just enough), no exato momento em que deseja (just in time), provavelmente não suportará por muito mais tempo um modelo de escola que trabalha sob a lógica de uma grade curricular com conteúdos genéricos, entregues de uma única vez e de forma ininterrupta, em porções padronizadas, em horários arbitrariamente estabelecidos, para todos os estudantes.

Talvez a obrigatoriedade legal da frequência escolar garanta uma sobrevida a esse modelo por um tempo um pouco maior do que a expectativa de vida da TV tradicional, mas o poder de coerção da lei também é limitado. Os índices de evasão do Ensino Superior e dos anos finais da Educação Básica têm se mostrado um forte indício dessa tendência.

Não acredito que, necessariamente, a escola precise acabar. Mas, se quiser sobreviver, ela precisará se reinventar. E um modelo de educação on demand é um caminho possível…

Em Salto, 01 de junho de 2019.

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2 comentários sobre “A Geração On Demand

  1. Oi, Paloma. Gostei do seu texto! Concordo que a lógica do funcionamento escolar está em completa desconexão com o modo atual de acessar e aprender as coisas das crianças e adolescentes.
    As experiências mais criativas e de protagonismo que eles vivem certamente acontecem em outros contextos, não na escola.
    Bjs

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