É preciso mudar, e agora?

A pandemia do coronavírus e o “novo normal” da educação, que vem se desenhando e será apresentado para nós em algum momento nos próximos meses, está exigindo de nós, educadores, muitas mudanças. Não se trata, apenas de fazer o que sempre fizemos presencialmente, agora a distância, o que já seria um desafio. Os mais experientes no uso de tecnologias, que são as primeiras pessoas a quem recorremos nesse cenário de caos, insistem em dizer que, além de lidar com o problema da distância física, temos de mudar a nossa concepção pedagógica e olhar para o processo de aprendizagem dos nossos alunos de uma maneira completamente nova!

Toda mudança já traz consigo um desafio. Grandes mudanças trazem grandes desafios. Quando essas mudanças precisam acontecer rapidamente, então estamos, realmente, diante de uma situação totalmente desafiadora. Este é exatamente o cenário que estamos vivendo hoje.

A boa notícia é que esta situação é transitória. A partir do momento em que fomos obrigados a sair do lugar ao qual estávamos acostumados e começamos a caminhar em direção a outro lugar, iniciamos um processo que teve um começo e terá um fim. O fim será um novo lugar onde, aos poucos, nos sentiremos confortáveis novamente. E isso vai acontecer mais adiante, acredite em mim.

Há cerca de quatro anos iniciei, junto de meus alunos e colegas do curso de Licenciatura em Química do IFSP Campus Capivari, um processo de mudança semelhante. É verdade que nós não fomos obrigados a mudar, naquela ocasião. Mudamos porque escolhemos mudar. Tomamos a decisão de iniciar um projeto de inovação, e ele era bastante disruptivo. Vínhamos todos, estudantes e professores, refletindo sobre a necessidade de mudar a partir da constatação de que o modelo de educação que reproduzíamos não se traduzia em aprendizagem de qualidade e, consequentemente, em transformação da vida das pessoas e da sociedade, como acreditávamos que deveria ser. Essa inquietação coletiva foi suscitada de diversas formas. Desde um grupo de estudos de pedagogias alternativas, que estava levando os professores a refletir seriamente sobre suas práticas havia alguns anos, até alguns processos de Design Thinking e alguns cursos voltados à reflexão sobre educação, que estavam mexendo com a cabeça de estudantes e professores no campus.

Constatar que o que fazemos não é bom, adequado ou suficiente, não é tão difícil. A maior parte dos professores e estudantes reconhece, com facilidade, que sua vivência na educação está muito aquém daquilo que poderia ou deveria ser. O problema é o que fazemos após essa constatação.

Em primeiro lugar, saber que algo não está bom não implica, necessariamente, em saber o que deve ser feito em lugar do que sempre foi feito. No nosso caso, conhecer experiências exitosas e teorias que as fundamentam foi essencial para entendermos que precisávamos mudar. Mas não sabíamos exatamente o que fazer, pois havia muitas possibilidades diferentes, e não dá para importar modelos prontos quando se fala de inovação em educação. Saber o que fazer, sem dúvida, era o primeiro desafio.

Mas o segundo e maior desafio era colocar um plano de mudança (qualquer que fosse) em prática. Parar de apenas querer fazer e fazer de fato. Agir. Sair do plano teórico e mergulhar na prática.

Esse passo é, de longe, o mais complicado. Primeiro porque nós temos medo (muito medo) de não dar certo, de não sabermos exatamente o que fazer quando os problemas começarem a surgir (e eles certamente aparecem). Temos medo até mesmo de não saber o que fazer antes de os problemas aparecerem! “Será que sabemos exatamente o que estamos fazendo?”, “Será que temos conhecimentos, habilidades e competências suficientes?”, são alguns dos questionamentos que insistem em surgir, sempre em tom desencorajador.

Mas, para além dos nossos medos, ainda precisamos enfrentar uma série de outras barreiras e limites externos, que dizem respeito a outras pessoas, à sociedade, às leis, à cultura de um modo geral. Sofremos pressões de todos os lados. Somos pressionados pelos estudantes, pelas famílias dos estudantes, pelos nossos gestores dentro da escola, pelos gestores de instâncias superiores, para além da escola, e até mesmo pelos nossos pares, que se incomodam quando algum colega começa a fazer o que eles chamam de “inventar moda”, ou “querer aparecer”…

Dar o primeiro passo no caminho desconhecido é muito desconfortável. Na verdade, em experiências de inovação, por mais que planejemos com antecedência, que calculemos riscos, que tentemos antecipar os problemas, o fato é que sempre teremos de lidar com situações completamente novas, inesperadas, e com a sensação de que, em diversos momentos, sequer haverá caminho sob os nossos pés. Teremos de dar o passo e torcer para que o caminho surja debaixo deles.

Mas enfim, juntos, de forma coletiva, demos o primeiro passo ainda no final de 2016, quando planejamos, junto com os estudantes do quarto semestre do curso de Licenciatura em Química, como deveria a ser a escola ideal, coerente com uma concepção que entende que cada estudante é singular, que tem seus interesses, talentos, estilos e ritmos de aprendizagem, mas ao mesmo tempo é um ser social, que se constrói na relação com o outro.

Inspirados em experiências como as da Escola da Ponte, de Portugal, e do Projeto Âncora, da cidade de Cotia, em São Paulo, criamos o que seria um projeto piloto, para acontecer em uma disciplina no início do ano seguinte, mas que acabou se transformando em um projeto de inovação do curso inteiro.

O foco central do projeto era o tão falado deslocamento do estudante, da periferia para o centro de seu processo de aprendizagem. Naturalmente isso implicou em uma mudança no papel do professor, que não poderia mais ocupar aquele espaço agora ocupado pelo estudante. Ao reinventar o papel do estudante, tivemos de reinventar o nosso próprio papel.

Em vez de aulas e provas, o trabalho pedagógico passou a se organizar em torno de aprendizagem por investigação ou aprendizagem baseada em projetos. Isso significa que, ao chegar ao campus, todos os dias, os estudantes não iam mais para as salas de aula assistir aulas, mas iam para diversos espaços diferentes, incluindo laboratórios de química, laboratórios de informática, biblioteca, espaço maker, auditório, pátio, refeitório e até mesmo… salas de aula. Enfim, o espaço que fosse mais adequado para o desenvolvimento das atividades planejadas.

Outra mudança importante, foi que, em vez de nós professores planejarmos o que os estudantes aprenderiam ou fariam a cada dia, eram os estudantes que faziam esse planejamento.  Mas cada estudante tinha um plano diferente, de acordo com aquilo que ele queria aprender em um intervalo de tempo que ele mesmo definia. Até mesmo a forma como ele iria aprender era escolhida por ele.

Para viabilizar essa descentralização do planejamento, nós criamos juntos, estudantes e professores, um instrumento que chamamos de “nuvem de objetivos”. A partir da leitura crítica do Projeto Pedagógico do Curso, em especial dos Planos de Ensino de cada disciplina, com suas ementas, objetivos e conteúdos, nós definíamos juntos quais seriam os objetivos básicos, que todos os estudantes deveriam atingir ao longo do semestre, e quais seriam opcionais, isto é, em que os estudantes que quisessem poderiam se aprofundar.

Nós incluímos, ainda, nessa nuvem, alguns objetivos chamados não cognitivos, relacionados à área socioemocional, e também ligados ao desenvolvimento da autonomia dos estudantes. Estes últimos objetivos seriam desenvolvidos com o apoio dos professores, não como especialistas em uma área do conhecimento, como de fato éramos, mas como orientadores. Para isso, dividimos pequenos grupos de estudantes para cada professor, e esse professor acompanhava os estudantes mais de perto, apoiando em seu planejamento e no desenvolvimento de sua rotina.

Para dar uma ideia de como as inovações mudaram radicalmente os papéis dos professores e estudantes nesse novo formato, não fazia mais sentido o professor ter um plano de ensino e nem mesmo um diário de classe com uma lista de chamada. Em lugar disso, cada estudante construiu seu próprio roteiro de aprendizagem, seu planejamento diário e fazia o seu próprio controle de presença. Sim, o controle de presença era feito pelos estudantes, que registravam em uma planilha o horário de chegada e de saída. Afinal, falamos tanto em autonomia, mas normalmente controlamos os estudantes de tal forma que não deixamos, sequer, que eles controlem sua própria frequência!

Também não fazia mais sentido uma prova ou outro formato de avaliação definido pelo professor para verificar se os estudantes aprenderam ou não. A avaliação estava a serviço deles, logo eram eles que solicitavam ser avaliados, quando considerassem que já tinham atingido determinado objetivo. E a forma como seria feita essa avaliação também era definida em conjunto, de acordo com o estilo de cada estudante.

Ao perceberem que a aprendizagem era um processo deles, que poderia acontecer em qualquer espaço, e não somente dentro da sala de aula, fomos questionados pelos estudantes sobre a necessidade de manter um modelo de educação presencial diário. Ora, se eles poderiam aprender sozinhos, ou em pares, ou em pequenos grupos, porque precisariam se deslocar diariamente de suas casas, muitas vezes em cidades mais distantes, para ir ao campus? Confesso que, ao refletir sobre aquela pergunta, não consegui encontrar uma justificativa, que não a limitação burocrática imposta por um modelo de curso classificado como “presencial”. É lógico que, em vários momentos, eles teriam de estar no campus para o desenvolvimento de atividades coletivas ou até mesmo para utilizarem os recursos que eles tinham disponíveis lá, como os laboratórios de química, por exemplo. Mas eu sabia que, na prática, isso não aconteceria todos os dias, e que nos dias em que eles precisassem apenas de livros, ou de acesso à Internet, eles poderiam, muito bem, permanecer em casa, desde que tivessem acesso a esses recursos lá. E a grande maioria dos estudantes tinha.

Veja que surpresa o destino reservou para nós… Três anos depois, a pandemia não apenas permitiu, mas os obrigou a ficar em casa. E, de repente, esse modelo de educação, que era tão disruptivo, pode passar a se tornar o padrão, o “novo normal” da educação daqui a algum tempo…

O projeto sofreu muitas mudanças desde o seu início efetivo, em fevereiro de 2017. Mudanças que podem ser vistas como avanços ou retrocessos, a depender da lente que se usa. Era parte da proposta, afinal, que o projeto passasse por um constante processo de ajuste e aperfeiçoamento, feito de forma coletiva, construído a várias mãos, com toda a complexidade envolvida em processos democráticos.

Entretanto, de tudo o que vivemos, podemos dizer, primeiro, que com muito estudo, esforço coletivo e vontade de fazer, nós conseguimos construir um projeto de inovação de verdade, que, neste momento, tem sido objeto de estudo de pelo menos quatro pesquisas de Doutorado. É um projeto cheio de falhas e de necessidades de ajustes, que vêm acontecendo até hoje, mas conseguimos.

Em segundo lugar, e aqui está a nossa principal conquista, podemos dizer que tiramos esse sonho do papel e partimos para ação. Não apenas vencemos pressões e limites externos, inclusive normas e leis, mas especialmente vencemos nossos próprios limites, medos, inseguranças. Enfrentando todo tipo de oposição, saímos da nossa zona de conforto, rumo ao desconhecido e chegamos até aqui.

Se valeu a pena? Sem dúvida! Especialmente agora, nesse momento de pandemia, podemos olhar para trás, constatar o quanto avançamos e dizer que estamos mais bem preparados para lidar com o “novo normal”.

Em Salto, 22 de junho de 2020.

Paloma Chaves

Há (dois) ano(s) uma utopia se tornava realidade…

Escrevi esse relato em forma de post no Facebook há exatamente um ano, em 2018, quando fazia um ano que eu havia passado na seleção do Doutorado em Educacão da USP. Hoje o Facebook me trouxe essa memória, e achei que o relato merecia vir para meu Blog.

Primeiro por se tratar de uma passagem autobiográfica significativa para mim. Segundo porque pode servir de inspiração para outros jovens e adolescentes que, assim como eu, não nasceram com a vida ganha, e por sua desvantagem na largada, terão de correr mais se quiserem cruzar a linha de chegada…

Na corrida do conhecimento, como diz o querido Nilson José Machado, diferentemente da corrida do mercado, não existem restrições quanto ao número de vencedores. Todos aqueles que enfrentarem e superarem suas próprias limitações, sejam elas internas (biológicas, psicológicas, espirituais), sejam elas externas (sociais, ambientais), cruzarão a linha de chegada e receberão o seu merecido prêmio. Isso porque o prêmio dessa corrida não é limitado ou finito, como o dinheiro, ou as riquezas de um modo geral, mas é ilimitado e infinito. O conhecimento não precisa ser dividido entre os vencedores. Mas, ao ser partilhado, ele ainda se multiplica…

É verdade que, no caminho, precisaremos da ajuda de muita gente. Dificilmente venceremos sozinhos essa corrida. Mas se não corrermos, ninguém correrá por nós. Então, faça a sua parte, e agarre cada oportunidade que surgir em sua vida com as quatro mãos!


Quando publiquei esse post, no ano passado (2017), queria ter escrito um textão autobiográfico, mas estava tão, mas tão extasiada, que não tive condições emocionais de escrever mais nada além de “Doutoranda na USP!”.

Hoje, celebrando o primeiro aniversário desse dia histórico em minha vida, vou gastar alguns minutos para tentar escrever o que eu não consegui antes.

Fui a primeira pessoa da minha família a concluir o Ensino Superior. E não foi em uma universidade pública, pois seria esperar demais de uma pessoa que estudou a vida inteira em escolas públicas, estaduais, e que sequer cursou o Ensino Médio regular (antigo Propedêutico), uma vez que optou por fazer um curso técnico.

Indecisa entre Técnico em Enfermagem e Magistério, acabei optando pela segunda alternativa, muito inspirada nas brincadeiras de infância, de professora das minhas amiguinhas lá no Parque CECAP, em Guarulhos, onde vivi até os 12 anos de idade. Essa escolha excluiu de minha formação as disciplinas de Química, Física, Biologia e até mesmo a Matemática de nível Médio, a não ser por uma introdução que era oferecida no primeiro dos quatro anos do Magistério, tentando garantir uma base mínima dessas disciplinas a todos os estudantes. Todos os conteúdos que deixei de conhecer na escola eram exigidos nos vestibulares de todas as faculdades, creio que muito mais até do que hoje em dia… Meu finado amigo Alexandre, carioca esperto, de Madureira, Engenheiro Naval formado pela UFRJ e colega do meu pai no banco onde ele trabalhava, ainda se dispôs a me ajudar com esses conteúdos (com exceção de Biologia), mas, apesar dos estudos com ele, muitas vezes no quiosque da praia, em Ubatuba, onde morei na adolescência, eu sabia que não seria fácil…

Sinceramente, a inscrição no vestibular da USP foi apenas para cumprir tabela. Achei, mesmo, que seria muita areia para o meu caminhãozinho… Qual não foi minha surpresa quando eu percebi que, se eu tivesse me inscrito em Pedagogia nessa que foi a única universidade pública para a qual prestei vestibular, teria passado, pelo menos, para a segunda fase. No entanto, como se não bastassem todos os percalços que passamos durante nossa escolarização, a maioria de nós ainda costuma viver a crise de não ter um projeto de vida aos 17 anos, quando temos que tomar decisões que nos são apresentadas como decisivas para o nosso futuro. A verdade é que eu estava indecisa entre Direito e Pedagogia. O Direito surgiu por incentivo de pessoas próximas que achavam que eu era eloquente e tinha boa capacidade de argumentação, o que me ajudaria a ser uma boa advogada. Além disso, professora (já) era uma profissão tão desvalorizada… Na verdade, a sociedade sempre acaba pressionando a gente a escolher aquilo que ela idealiza como sendo a melhor profissão, em outras palavras, o que vai proporcionar mais estabilidade financeira e que vai possibilitar que a gente seja mais respeitada. Quanta bobagem…

Eu não tinha dinheiro para ficar prestando vestibular em tudo quanto é lugar. Então, além da USP, escolhi outras duas instituições privadas (sem saber como eu poderia pagar as mensalidades, caso viesse a passar). Na USP eu não podia escolher duas opções em áreas diferentes. Então escolhi só Direito. Na FMU e no Mackenzie, pude escolher tanto Direito quanto Pedagogia. Para decepção da minha querida professora de Língua Portuguesa do Magistério, Helô (uma lenda viva em Ubatuba), não entrei na USP, onde ela tinha certeza de que eu conseguiria. Mas, como prêmio de consolação, passei em Pedagogia nas outras duas. No Mackenzie o curso era vespertino, o que limitaria minhas possibilidades de arrumar um trabalho para sobreviver. Além disso, a chance de eu conseguir uma bolsa era muito remota, pois só havia bolsas próprias da Universidade, e eu fui informada de que, normalmente, apenas pessoas ligadas à Igreja Presbiteriana (especialmente filhos de pastores) ou outros casos muito excepcionais, conseguiam essas bolsas. Na FMU, além de o curso ser noturno (o que me abriria mais possibilidades de arrumar um trabalho), eles ofereciam o chamado Crédito Educativo (do governo FHC). Felizmente, em pouco tempo consegui tanto o trabalho, quanto o financiamento, além da ajuda preciosa de muitos amigos que ora me cediam uns vale-transportes, ora uns vale-alimentação, além de ajuda para outras despesas. A moradia, que seria o mais difícil, eu consegui pela generosidade da minha tia Josira, que abriu as portas da casa dela, onde sempre cabe mais um. Sou grata não só a ela, mas aos meus primos Moises, Helder e Tati por terem me aturado por seis meses na casa deles. Assim, deixei a casa dos meus pais em Ubatuba com um cheque do meu pai para pagar a primeira mensalidade, e passei a cuidar de minha vida a partir dali.

No final do primeiro ano da faculdade acabei me casando e, quando cursava o terceiro ano, tive minha primeira filha. Em seguida, tão logo concluí a faculdade, tive a segunda filha, e assim uma possível carreira acadêmica foi interrompida por tempo indeterminado.

Na verdade eu nem almejava uma carreira acadêmica. Na verdade, mesmo, eu nem sabia se seguiria carreira na área da educação. Decepcionada com a área, e acreditando que eu não tinha a menor vocação para trabalhar ali, passei alguns anos sendo exclusivamente mãe, e depois fui trabalhar em uma pequena empresa de tecnologia que tive com me ex-marido, onde, apesar de trabalhar na área administrativa, acabei aprendendo bastante sobre informática, tendo me tornado uma usuária mais avançada do que a maioria das pessoas que eu conhecia no uso de tecnologias. Poucos anos depois passei em um concurso na Prefeitura de São Bernardo do Campo, e aos 25 anos tomei aquela decisão que as pessoas achavam que eu tinha que ter tomado aos 17 anos. Finalmente eu tinha um projeto de vida! Escolhi a educação. Descobri que eu poderia contribuir para o mundo ser um lugar melhor se eu ajudasse as pessoas a se transformar por meio da educação.

Comecei trabalhando nas séries iniciais da educação básica, e, em seguida, passei a trabalhar com o uso de tecnologias na educação, inclusive com formação continuada de professores para o uso pedagógico das tecnologias. Essa experiência acendeu em mim o desejo de, futuramente, trabalhar na formação inicial de professores. Mas, infelizmente, esse era um futuro muito distante, pois, como já não havia mais o curso de Magistério, para trabalhar nessa área eu precisaria cursar uma pós-graduação, e se uma especialização parecia difícil, um Mestrado e um Doutorado pareciam impossíveis. Uma utopia…

Mais de doze anos se passaram desde que eu terminara minha graduação. Minha vida passou por transformações profundas e radicais (algumas até traumáticas), mas, finalmente, o Mestrado estava acontecendo, graças ao incentivo e apoio do meu parceiro de vida, Eduardo Chaves. E não era em uma instituição qualquer. Era na PUC-SP, uma universidade tão bem conceituada, mas que eu nem cogitei estudar na graduação (apesar da insistência de outras duas professoras importantes em minha vida, a Malu Borim e a Sonia Bomfim, também do Magistério), porque sabia que não teria recursos para pagar as altas mensalidades… E como se não bastasse estar na PUC, ainda tive o privilegio de ser orientada pelo Prof. Fernando Almeida, que eu tanto admirava.

Descobri que é verdade que o Mestrado dói. A gente tem de aprender tanto, em tão pouco tempo, que me parece impossível sobreviver a ele sem muito sofrimento. Mas, enfim, eu sobrevivi. E a dor foi tão forte, que eu não quis nem pensar em fazer Doutorado. Como eu trabalhava em escola de educação básica, onde esse tipo de título acadêmico nem é tão valorizado, estava satisfeita com o Mestrado.

Entretanto, a vida, que não para, deu mais algumas voltas, e aquele sonho de trabalhar com formação inicial de professores se tornou realidade no IFSP. Nesse contexto, o Doutorado passou a ser algo importante dentro da minha nova carreira. E assim, três anos após concluir o Mestrado, passei a sonhar com o Doutorado. Mais uma vez com o incentivo e apoio do meu marido e melhor amigo, escrevi e submeti um projeto. No entanto, em minha primeira tentativa, não passei no exame de proficiência em inglês… Imaginei que minha dificuldade seria a aprovação do projeto, mas, enfim, foi no inglês que meu sonho ruiu…

Foi bem difícil lidar com a frustração. Eu estava em uma fase da vida em que parecia que tudo que eu fazia, prosperava. Eu havia acabado de passar em um concurso concorrido no IFSP, em que havia uma única vaga! Um trabalho escrito com duas amigas acabara de ser aceito em um congresso em Portugal. Uma proposta para ministrar uma oficina de Design Thinking para Educadores, pela Pró- Reitoria de Ensino do IFSP, havia sido selecionada. Mas quando a autoestima da gente fica abalada, não importa tudo o que fizemos até ali. A única coisa que conseguimos pensar é que somos um fracasso, mesmo. Que era muita pretensão minha querer entrar justamente naquela universidade pública na qual eu não havia conseguido cursar nem a graduação. Quem era eu para querer aquilo? Fora isso, tinha o peso da expectativa das pessoas que me cercam… O marido tinha certeza de que eu conseguiria. As filhas. Os amigos. A família… Que difícil carregar tanta expectativa nos ombros!

Ao longo daquele ano, no entanto, tive a felicidade de experimentar muitas coisas boas junto aos meus alunos e colegas do IFSP. Nesse processo nasceu o projeto de inovação da Licenciatura em Química, do IFSP Capivari. E esse projeto me fez voltar a sonhar… No ano seguinte mexi um pouco no projeto que eu havia submetido no processo anterior da USP (e que nem chegou a ser apreciado), incluindo coisas que eu havia aprendido de forma tão significativa ao longo daquele ano. Criei coragem, e tentei outra vez. Com muito mais humildade. Com muito menos expectativas…

E, então, aconteceu…

Meu projeto foi aceito pelo Prof. Ulisses Araujo, alguém que eu não apenas admirava, mas com quem havia aprendido tanto em suas aulas de Psicologia de Educação, ao lado da Profa. Valeria Arantes, no Canal da UNIVESP, em minha preparação para ministrar aulas de Psicologia da Educação no IFSP.

Enfim, foi um sonho, dos grandes, que virou realidade diante dos meus olhos, a essa altura, quase incrédulos… Quase, porque no fundo eu sou uma otimista inveterada e sempre acabo acreditando que coisas boas podem acontecer. Se eu fosse totalmente incrédula, talvez nem tivesse tentado outra vez, né? Mas tentei. E deu certo.

Apesar de eu ser grata a Deus e a todas essas pessoas que mencionei nesse textão, e a outras pessoas que fizeram parte da minha história, me fazendo ser quem eu sou, hoje eu dedico essa conquista à minha professora Helô. Ela foi a primeira a ter tanta certeza de que eu estudaria na USP (e sua decepção lá em 1993 deixou isso bem evidente), que plantou em mim a semente que, a seu tempo, deu o seu fruto. Obrigada, Helô. Não sei se essa mensagem vai chegar até você, mas a minha gratidão é imensa.

Paloma Chaves

Em Salto, 10 de Julho de 2019.

A Geração On Demand

Recentemente foi divulgado na imprensa que a Rede Globo tem tomado algumas medidas meio radicais de contenção de gastos. Após rever e até rescindir diversos contratos com alguns de seus astros e estrelas, as novas medidas afetaram até mesmo alguns pequenos mimos como manicures e motoristas para os artistas.

Algumas razões têm sido aventadas para explicar a situação de aperto em que se encontra a emissora que sempre foi “campeã de audiência”. Além dos problemas com a concorrência, que têm afetado justamente sua posição de liderança, a emissora também tem sofrido os impactos do cisma social desencadeado pelas disputas políticas das alas à direita e à esquerda do espectro político. Ambos os lados da polarização acusam a emissora de colocar sua grade de programação a serviço do inimigo, e isso tem afastado os antigos telespectadores que, por essa razão, acabam procurando a Rede Record ou o SBT, como alternativas. Até mesmo o corte de verbas de publicidade do governo federal tem sido apontado como hipótese para a redução do orçamento da emissora.

Há, entretanto, uma razão que tem sido pouco apontada como possível causa do declínio da emissora. E, na minha opinião, a razão ignorada é justamente a principal: a cultura do vídeo on demand.

Não faz nem uma década quando vivi, pela primeira vez, a experiência de poder escolher o que eu queria assistir, e a hora que eu queria assistir, durante um vôo entre São Paulo e Lisboa. Até então havia uma programação de entretenimento igual para todos os passageiros e eu vivia bastante bem com isso. Fiquei muito empolgada com a novidade, apesar da dificuldade inicial que enfrentei para escolher o que eu queria assistir. Eu simplesmente não estava acostumada a fazer escolhas, a tomar decisões em relação ao que iria assistir. Eu estava perfeitamente adaptada à minha condição de consumidora passiva da seleção feita por algum especialista em entretenimento.

Mas não demorou muito até que essa tecnologia chegasse às nossas casas. A Netflix talvez seja a empresa que mais tenha popularizado o vídeo on demand via streaming no Brasil e no mundo. Apesar de ter iniciado o serviço em 2007, em maio de 2018 ela passou a ser a maior empresa de entretenimento do planeta, superando a Disney, e hoje já conta com, pelo menos, 139 milhões de assinantes. Apesar de seus números serem impressionantes, hoje ela é apenas mais uma nesse imenso mercado, que já conta com outras gigantes, como a Amazon Prime e a HBO Go, dentre outras. Isso para não mencionar concorrentes gratuitos, como o YouTube.

Não faz muito tempo, passei uma tarde sozinha na casa da minha filha, e fiquei aflita quando percebi que não teria a companhia da televisão, simplesmente porque ela não tem antena para os canais abertos, e nem mesmo uma assinatura de TV a cabo. Minha filha de 20 anos é uma autêntica representante da geração que aboliu completamente a ideia de ter acesso a uma programação controlada por uma emissora de televisão, e investiu apenas em um Google Chromecast, um pequeno aparelho que possibilita que ela assista, na tela da TV, o conteúdo que é exibido na tela de seu celular ou notebook. Dessa forma ela pode assistir aos seus filmes e, principalmente, às suas séries, que são as únicas coisas que lhe interessam, de fato.

Enquanto eu acho muito estranho alguém não ter TV em casa (porque o que eu entendo por TV é a programação da TV aberta), ela acha ainda mais estranho que alguém perca tempo assistindo uma programação aleatória, que ela não escolheu, extremamente limitada em termos de oferta de conteúdo, e rígida em termos do horário em que se pode assistir àquilo que, eventualmente, se queira. Racionalmente eu não posso discordar dela. É realmente uma estupidez ficar dependendo da grade de programação tamanho único, determinada unilateralmente por uma emissora, ou por um conjunto de emissoras, quando se tem tantas opções. No entanto eu estou tão condicionada a esse modelo, que simplesmente não sinto vontade de escolher o que vou assistir na maior parte do tempo. Eu me acomodei nessa posição de receptora passiva. O problema é que a minha, talvez seja a última geração de telespectadores de TV aberta. É uma tendência. É um caminho sem volta.

Voltando à Rede Globo, apesar de seu esforço com a Globoplay, talvez ela tenha perdido o timing para entrar nesse mercado. Vamos acompanhar. Mas, de qualquer forma, a TV aberta, como conhecemos, está com os dias contados. A queda na audiência tende apenas a se agravar. Mesmo suas concorrentes, que podem até estar comemorando um pequeníssimo crescimento em sua audiência, não deveriam se empolgar. Embora eu não me sinta confiante para fazer uma previsão em termos de prazo, eu não hesito em afirmar que a TV não sobreviverá no formato tradicional.

Mas esse fenômeno, que está abalando de forma definitiva as estruturas da maior fonte de entretenimento da população, se reflete também em outras áreas. E a Educação é uma delas.

A geração on demand, que tem total controle sobre o conteúdo que deseja acessar e sobre o ritmo, a frequência e a direção da exibição (hands on), na porção adequada aos seus anseios (just enough), no exato momento em que deseja (just in time), provavelmente não suportará por muito mais tempo um modelo de escola que trabalha sob a lógica de uma grade curricular com conteúdos genéricos, entregues de uma única vez e de forma ininterrupta, em porções padronizadas, em horários arbitrariamente estabelecidos, para todos os estudantes.

Talvez a obrigatoriedade legal da frequência escolar garanta uma sobrevida a esse modelo por um tempo um pouco maior do que a expectativa de vida da TV tradicional, mas o poder de coerção da lei também é limitado. Os índices de evasão do Ensino Superior e dos anos finais da Educação Básica têm se mostrado um forte indício dessa tendência.

Não acredito que, necessariamente, a escola precise acabar. Mas, se quiser sobreviver, ela precisará se reinventar. E um modelo de educação on demand é um caminho possível…

Em Salto, 01 de junho de 2019.

Do OLPC ao UCA (ou da Aprendizagem ao Ensino)

I. Preâmbulo de 2019

Este artigo foi escrito originalmente em junho de 2011, como parte das atividades acadêmicas do meu curso de Mestrado. Na ocasião havia sido solicitado que eu escrevesse um artigo sobre o projeto Um Computador por Aluno (UCA), no qual eu, inclusive, havia trabalhado como membro da equipe de formação. Embora não tenha sido explicitado, logo ficou claro que a expectativa era a de que eu destacasse os aspectos positivos do projeto, quando muito, fazendo algumas críticas pontuais. Mas, infelizmente, não foi o que eu fiz.

O artigo foi muito malvisto em um contexto em que o UCA ainda estava em andamento, e em que a instituição onde eu fazia o Mestrado era parte da equipe nacional responsável pela formação dos professores e avaliação do projeto. Mas o artigo foi malvisto porque, diferentemente do que se esperava, nele eu teci duras críticas ao projeto como um todo, pelas suas premissas, denunciando alguns aspectos que considero nevrálgicos para o êxito de iniciativas na área da educação, não apenas relativas ao uso de tecnologias, mas de qualquer iniciativa que busque promover aprendizagem dos estudantes.

O artigo, inclusive, quase me custou a obtenção de meu título de Mestre. Quando o prazo para defender a dissertação estava no fim, eu descobri que o referido texto não tinha produzido nenhuma nota no sistema. Ele não tinha sido apenas mal avaliado, mas havia sido rejeitado, com solicitações de alterações que deveriam ser realizadas sob pena de ficar sem nota.

Nota… Sempre ela. O principal mecanismo de coerção que professores usam contra seus alunos quando querem induzi-los a agir ou pensar como eles consideram certo. Enfim, fiz as alterações a que fui obrigada, obtive a nota necessária, e hoje estou publicando o artigo original, onde expresso exatamente o que eu pensava a respeito do projeto, e que continuo pensando até hoje. Assim o leitor também terá a oportunidade de julgar, segundo seus próprios critérios, os argumentos aqui defendidos. Estou pronta para o debate de ideias.

O UCA, que teve início como projeto piloto em 2007, e foi expandido para 300 escolas em todo o Brasil a partir de 2010, foi descontinuado, segundo consta, aproximadamente entre 2012 e 2013, embora nunca tenha sido feito um pronunciamento oficial sobre o fim do projeto. Muitas escolas ainda possuem o que restou dos laptops, mas a maior parte dos equipamentos, provavelmente, já está totalmente sucateada. Afinal, nem mesmo tecnologia de ponta costuma ter uma vida útil tão longa, quanto mais os computadores que foram efetivamente entregues às escolas.

Talvez a reflexão proposta neste artigo possa ter um valor diferente hoje, uma vez que não trata mais de uma profecia, mas de um fato consumado. Talvez seja útil para ações futuras na área de educação. Esse é o meu intuito ao disponibilizar este artigo agora.

II. Introdução

A proposta de criar um programa de escopo global que viabilizasse a colocação de um computador nas mãos de cada criança dos países em desenvolvimento foi, no momento em que foi concebida e apresentada ao mundo, uma ideia ao mesmo tempo de louco e de gênio.

De louco porque, nos idos de 2005, sugerir que todas as crianças de um país como o nosso poderiam vir a tornar-se donas de um laptop só podia parecer desvario de um louco. Para que isso acontecesse, os laptops teriam de custar perto de 100 dólares cada, nos cálculos de Nicholas Negroponte, o pai da ideia. Mas, no mercado, eles ainda custavam por volta de dois mil dólares cada – vinte vezes mais do que o preço considerado viável. Onde é que se acharia tanto dinheiro assim para custear a loucura sonhada por Negroponte?

Mas a proposta acabou sendo uma tacada de gênio… Os fabricantes de laptops se apavoraram diante da ideia de que Negroponte pudesse encontrar um fabricante em Taiwan que viabilizasse seu projeto – e colocasse em perigo as gordas margens de lucro de seus produtos supervalorizados. Assim, resolveram eles mesmos ir reduzindo essas margens. Perderiam os anéis, mas conservariam os dedos. E esse processo de redução de custos e de preço continua até hoje. Os netbooks de hoje, que custam menos de quinhentos dólares, e que, no Brasil, se vendem em até vinte prestações de 25 dólares, sem juros, acabaram se tornando os herdeiros do projeto de Negroponte.

Mas o mérito de Negroponte não se limita a ter cutucado os fabricantes e oportunamente os levado a reduzir drasticamente o custo de seus produtos e as margens de lucro praticadas, assim arrastando o preço para baixo. A ideia de One Laptop Per Child tem méritos próprios que vão além dessa sacudida no mercado.

O presente artigo pretende discutir as expectativas iniciais e o impacto do Programa OLPC, global, e do programa UCA, brasileiro, seis anos depois das primeiras articulações.

Quais elementos do OLPC atraíram a atenção do governo brasileiro em Janeiro de 2005, em Davos, durante o Fórum Econômico Mundial, quando ele teve conhecimento do projeto que pretendia oferecer aos países em desenvolvimento a possibilidade de distribuir um computador para cada criança do seu país? Qual foi a proposta apresentada por Nicholas Negroponte, Seymour Papert e Mary Lou Jepsen, em Junho do mesmo ano, que encantou o governo brasileiro?

E em que se tornou o OLPC aqui no Brasil, quando se transformou em UCA? Quais os principais desafios observados? Quais as razões por detrás das mudanças sutis efetuadas? E quais as perspectivas de a proposta original de o sonho de Negroponte se concretizar?

III. O OLPC (One Laptop Per Child) [1]

“Dentro da ideia de alta qualidade na Educação, nossa missão não é apenas prover laptops, mas criar uma cultura de aprendizagem, engajando as crianças na sua educação e desenvolvendo a paixão pelo aprender.”

Silvia Kist [2]

Para iniciar essa discussão, é interessante resgatar alguns princípios que norteiam o projeto concebido por Nicholas Negroponte, no MIT (Massachusetts Institute of Technology), cuja melhor tradução seria Um Laptop Por Criança (não por Aluno).

O projeto original se define, antes de tudo, como um projeto social, sem fins lucrativos, que tem uma missão social em vez de um mercado.

A missão do OLPC apresenta alguns princípios básicos:

  1. As crianças devem se tornar proprietárias dos laptops. Isto quer dizer que elas devem ser livres para levá-los para casa depois do uso na escola, para usá-los onde e no que desejarem em suas comunidades.
  2. O foco do projeto está na educação inicial, ou seja, foi concebido para crianças na faixa etária de 6 a 12 anos – que é a faixa mais delicada, onde se ganham e se perdem as batalhas da educação. Por isso os laptops precisam ser resistentes, para aguentar o manuseio nem sempre delicado das crianças dessa faixa etária.
  3. Nenhuma criança deve ser excluída do processo. Para isso, não só as escolas devem dispor de computadores, mas cada aluno, de cada sala de aula, deve receber o seu próprio computador. Ou seja: o laptop não é apenas chamariz para trazer a criança para a escola, ele é potente ferramenta de aprendizagem.
  4. Os laptops devem ter conexão com a Internet, porque a Internet oferece possibilidades interessantes de aprendizagem. Sendo móveis, os laptops permitem que seus proprietários aprendam a qualquer momento, em qualquer lugar, mesmo fora da sala de aula e da escola.
  5. O laptop concebido para o projeto, batizado de XO, deve ter software aberto e livre, para poder ser melhorado e adaptado às necessidades das crianças, da mesma forma que o hardware também é aberto.

A primeira pergunta que é feita quando se questiona o projeto OLPC é “Por que dar um laptop para uma criança que pode não ter nem eletricidade, nem água corrente, talvez em muitos casos nem mesmo comida suficiente em casa? Não deveríamos primeiro atender a essas necessidades mais básicas?”.

A resposta dos criadores do OLPC é interessante.

Se a palavra laptop for substituída por educação, então tudo fica claro: “Por que dar educação para uma criança que pode não ter nem eletricidade, nem água corrente, nem mesmo comida o tempo todo?”. Ninguém retém ou segura a educação até que todas as outras necessidades da criança estejam supridas. Isso porque a educação pode ser o fundamento para a solução, a médio e longo prazo, de todos os outros problemas!

Por isso, o XO foi projetado para ser utilizado em lugares que necessitam dele mais do que em outros. Por isso o OLPC foi criado como projeto para países em desenvolvimento.

O XO foi projetado para ser resistente, pois foi feito para crianças pequenas.

O XO foi concebido como um equipamento de baixo custo, para que possa ser produzido em larga escala.

O XO foi elaborado para consumir pouca energia, para poder ser usado em locais onde não haja energia elétrica, onde as fontes de energia possíveis são alternativas, como energia solar, por exemplo.

A tela do XO foi desenhada ser usada ao ar livre, com incidência de luz solar, pois há locais em que as crianças têm aula ao ar livre. A webcam do XO foi concebida para que os alunos possam tirar fotos e fazer filmes. Além disso, uma enorme quantidade de softwares gratuitos já vêm instalados, todos focados na educação, para serem usados pelas crianças.

Por fim, o XO foi concebido para permitir não apenas a conexão à Internet, mas para permitir que cada laptop seja um ponto de acesso à Internet. Assim, mesmo em casa, as crianças podem ser pontos múltiplos de acesso, ampliando a área de abrangência do acesso à Internet. Tudo isso para que as crianças possam usar a Internet para aprender, explorar, compartilhar, criar juntas, umas com as outras e com as comunidades em que vivem.

Quando usado na sala de aula, o XO torna as crianças mais engajadas, inspiradas, envolvidas. Elas aprendem, com ele, a tirar fotos, fazer desenhos, ouvir músicas, fazer vídeos, escrever histórias, e imaginam como fazer outras coisas, e começam a ensinar uns aos outros, e, ao chegar em casa, até mesmo aos seus pais e aos demais membros de suas comunidades.

Quase no final do vídeo de apresentação do XO, o narrador do vídeo resume a proposta dizendo, “dê um laptop e mude o mundo!”, e por fim declara que, com o XO as crianças aprendem a solucionar seus próprios desafios, e quem sabe, um dia eles poderão nos ajudar a solucionar os nossos.

Por que vale a pena destacar essas características da concepção original?

Porque, em primeiro lugar, no OLPC o sujeito do projeto é a criança (child) e não o aluno, como na versão brasileira, chamada de UCA – Um Computador por Aluno. Essa sutil diferença, naturalmente, não é fruto de um mero descuido de tradução, ou de tentativa de criar uma sigla pronunciável.

No OLPC, a ênfase na criança, em vez do aluno, fica evidente em outros aspectos, como por exemplo, nos princípios básicos, que enfatizam que a criança deve ter liberdade para levar e usar o laptop onde desejar, e não apenas na escola, que é o local onde a criança desempenha o papel de aluno.

Outro aspecto que evidencia essa diferença, é que no OLPC, cada laptop foi projetado para ser um ponto independente de acesso à Internet, de modo que, de alguma forma, mesmo fora da escola, os alunos possam ter acesso à rede. Mais uma vez fica evidente que a proposta do OLPC é proporcionar autonomia para que o aluno possa usar os laptops para aprender não apenas dentro, mas também fora da escola. E não apenas para ele aprender, mas para proporcionar essa experiência a toda a sua família e à sua comunidade.

Em recente entrevista via Twitcam organizada pela Profa. Elizabeth Almeida, na PUC-SP, dois comentários do prof. Juliano, registrados no Twitter, também corroboram essa tese:

O foco do trabalho c/ laptops visa à sociedade, e não apenas à escola, diz Juliano (@webcurriculo live on http://twitcam.com/4kurs)

Investe-se nas cças, para a escola ser levada junto, e não na escola, para levar as cças. (@webcurriculo live on http://twitcam.com/4kurs)

Essa é a concepção que permeia o projeto, e que aparece em depoimentos como o de Silvia Kist, membro do time do OLPC, em seu Blog sobre a experiência de formação de professores em Ruanda: “… começamos a introduzir a ideia de aprendizagem com o laptop e não ensino de informática na escola”.

A ênfase na experiência de aprendizagem em lugar do ensino escolar fica evidente nessa análise um pouco mais profunda do OLPC. E essa ênfase não existe apenas no projeto em si. Na concepção de Seymour Papert, um dos mentores do projeto, que esteve no Brasil conversando com o governo brasileiro em 2005, aprendizagem também não é privilégio exclusivo da escola [3]. A própria UNESCO, ao propor que aprendizagem é algo que deve ser vivido ao longo de toda a vida [4], também sugere que não se trata, no caso da aprendizagem, de uma prerrogativa da escola.

Urge, portanto, fazer a distinção entre Educação e Escola, Aprendizagem e Ensino, para assim compreender qual pode ser o papel dos laptops na transformação da vida das crianças.

  • Educação é o processo por meio do qual os seres humanos desenvolvem suas potencialidades ao longo de toda a vida.
  • Escola é a instituição que foi concebida para ser um espaço privilegiado de educação durante um período específico da vida.
  • Ensino é uma ação intencional, planejada, controlada, daquele que pretende proporcionar uma experiência de aprendizagem ao outro.
  • Aprendizagem é o grande resultado almejado pela educação, é o ato de construir conhecimentos, desenvolver habilidades, definir valores, adotar atitudes e dominar competências que mobilizem os conhecimentos, habilidades, valores e atitudes (Perrenoud, 1999) em uma situação prática da vida real, seja na tomada de uma decisão, na realização de uma tarefa, na resolução de um problema, na resposta a uma pergunta complexa, etc.

Em suma, o OLPC é um projeto essencialmente voltado à Educação, que tem foco na Aprendizagem, não apenas dentro da Escola, mas também fora dela, e não apenas por meio do Ensino, mas também pela interação, colaboração horizontal, entre pares, entre as crianças e a comunidade como um todo.

IV. O UCA (Um Computador por Aluno)

Como e por que o OLPC no Brasil se transformou em UCA?

Talvez a resposta possa ser encontrada numa frase curiosa, mas profundamente verdadeira, que Ana Teresa Ralston, Diretora de Tecnologia Educacional e Formação de Professores da Abril Educação, disse no lançamento das Redes Sociais da Editora Ática e Scipione: “Tudo o que entra na escola a escola mastiga e transforma em escola”.

A transformação do OLPC em UCA é parte desse processo.

Um projeto revolucionário, que coloca um laptop nas mãos de cada criança, que permite que a criança fique com ele, o leve para casa, e o use da forma que desejar, para aprender, para se divertir, para ajudar a família e os amigos, e que se torna um ponto de acesso à Internet para a comunidade em que o aluno mora, e, assim, não só uma poderosa ferramenta de aprendizagem individual, mas uma potente ferramenta de educação social e emancipação comunitária, esse projeto revolucionário se tornou, no Brasil, um projeto de utilização da tecnologia na sala de aula da escola, pelo aluno, sob a tutela do professor…

Por isso, os programas que se constroem ao redor do projeto UCA aqui no Brasil são focados na formação de professores, em vez de no desenvolvimento dos alunos.

Se a escola não é o único espaço possível de aprendizagem, e se a formação de professores encontra tantos obstáculos, sendo o principal deles o simples fato de os professores, em sua grande maioria, não serem nativos digitais, por que investir tanto em formação de professores?

Não que investir em formação de professores não seja importante, e nem que o conteúdo que está sendo oferecido aos professores nessa formação não seja de boa qualidade. Pelo contrário! Os módulos de formação do UCA são, do ponto de vista de concepção, de altíssimo nível! Eles foram elaborados por uma equipe de educadores coordenada por Pedro Ferreira de Andrade, da recém-extinta SEED/MEC. A equipe de Formação e Acompanhamento, composta por Beatriz Corso Magdalena – UFRGS, Iris Elisabeth Tempel Costa – UFRGS, Maria Elisabette Brisola Brito Prado – UNICAMP, Maria Elizabeth Bianconcini de Almeida – PUC/SP, Maria Helena Cautiero Jardim – UFRJ, Mauro Cavalcante Pequeno – UFC e pelo próprio Pedro Ferreira de Andrade – SEED/MEC, tem feito um excelente trabalho.

E o melhor é que o aspecto mais rico dessa formação não diz respeito ao uso da tecnologia em si, mas sim às questões filosóficas que fundamentam a ação pedagógica.

O foco em uma pedagogia de perguntas, em vez de respostas, a valorização do protagonismo do aluno e diversos outros aspectos, são de valor imensurável, e certamente trazem grande contribuição para a escola. No entanto, até que esse investimento em formação consiga transpor todas as barreiras impostas pela própria cultura existente no sistema de ensino, os alunos, ou melhor, as crianças, correm o risco sério de não ser atingidas por tamanha revolução. As barreiras envolvem, dentre outras coisas, as frágeis condições de trabalho dos professores e mesmo dos gestores, e a falta de tempo desses profissionais para se dedicar à própria formação.

Impedidos de levar para casa, e muitas vezes até de usar dentro da escola, seja por decisão dos professores, que esperam sentir-se mais seguros com o uso da tecnologia antes de proporcionar aos seus alunos o acesso a elas, ou pelas dificuldades de solucionar os problemas técnicos existentes – que são muitos, e de todos os tipos – os alunos não conseguem viver aquilo que Negroponte idealizou. Sequer o laptop utilizado no projeto atualmente é o que foi projetado originalmente.

Ao terminar a aula, os alunos são de novo crianças sem acesso digital. Ao sair da escola e ir para suas casas e para suas comunidades, as crianças atravessam de novo o fosso digital e vão para um mundo diferente, que não sofrerá o impacto que poderia receber se o projeto não tivesse mudado de OLPC para UCA.

V. E agora?

Enfim, temos o UCA, e em breve, esperamos, ele será expandido por todo o Brasil. Cabe perguntar: e agora?

Se, há poucos anos era realmente difícil imaginar um cenário em que a totalidade dos alunos de uma escola pública brasileira pudesse portar seu próprio laptop, hoje perguntamos que diferença esse projeto está fazendo na vida desses alunos?

Antes a dificuldade era latente não apenas pelas dimensões continentais do Brasil, mas também porque, apesar de o país ostentar a oitava ou mesmo a sétima posição no ranking da economia mundial, o custo dos computadores, mesmo os mais simples, ainda estava muito distante da realidade. Hoje, poucos anos depois, esse cenário já é bastante diferente nas trezentas escolas participantes do Programa UCA espalhadas por todo o país, mas que impacto isso tem causado na aprendizagem dessas crianças?

A iniciativa do Governo Federal, em tese, tem viabilizado não apenas que cada aluno das escolas participantes receba seu laptop, mas também que cada escola receba a infraestrutura de rede sem fio necessária para distribuir acesso à Internet dentro de suas dependências. Entretanto, lembro-me, com preocupação, da frase de um educador australiano, Bruce Dixon [5], em que ele disse: “A pior tragédia que pode ocorrer na área da educação é digitalizar todo o conteúdo que hoje é usado na educação, melhorar a infraestrutura tecnológica da escola para que ela possa estar disponível para os alunos 24 horas por dia, sete dias por semana, 52 semanas por ano, prover cada aluno com seu computador pessoal, para que possa aprender a qualquer hora e a partir de qualquer lugar, e, no entanto, constatar que nada mudou, substancialmente, na educação.”

Além de a escola permanecer como está, os alunos, em suas casas, em suas comunidades, também permanecem como estão. E assim permanecerão, enquanto a escola continuar achando que deve monopolizar o acesso dos seus alunos às tecnologias digitais.

VI. Referências

5ª Conferência Internacional sobre Educação de Adultos (CONFINTEA), Hamburgo, Alemanha, 1997. Declaração Final e Agenda para o Futuro. Trad. Instituto Nacional de Administração de Portugal. Lisboa, Portugal: Ministério da Educação de Portugal, 1998.

PERRENOUD, P. Construir as Competências desde a Escola. Trad. Bruno Charles Magne. Porto Alegre: Artmed Editora, 1999.

SEYMOUR, P. em entrevista publicada no site da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. (http://www.dimap.ufrn.br/~jair/piu/artigos/seymour.html) Acesso: 14/06/2011.

UCA Projeto Um Computador Por Aluno. Formação Brasil: Projeto, Planejamento das Ações, Cursos. SEED, Ministério da Educação.

YANG, J; VALDÉS-COTERA, R. Conceptual Evolution and Policy Developments in Lifelong Learning. Hamburg, Germany: Unesco Institute for Lifelong Learning, 2011.

VII. Notas

[1] Toda a descrição do projeto OLPC apresentada neste texto, bem como do laptop projetado por Nicholas Negroponte, como parte essencial do projeto, foi baseada na tradução livre do site oficial do projeto. Vide texto e vídeos originais em <http://one.laptop.org/about/mission>. Acessado em 12/06/2011.

[2] Silvia Kist faz parte do time de aprendizagem da ONG One Laptop Per Child (OLPC), tendo trabalhado na implantação do projeto 1:1 em Ruanda. No Brasil, antes ingressar à OLPC, participou do grupo de pesquisas do LEC-UFRGS no projeto “Um Computador por Aluno”, sob orientação da professora Léa Fagundes.

[3] Vide entrevista publicada no site da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Disponível em: <http://www.dimap.ufrn.br/~jair/piu/artigos/seymour.html>. Acessado em 14/06/2011.

[4] Vide “Evolução Conceitual e Desenvolvimento de Políticas de Educação ao Longo da Vida”, da UNESCO, e “Declaração Final e Agenda para o Futuro” da 5ª Conferência Internacional sobre Educação de Adultos (CONFINTEA), Hamburgo, Alemanha, 1997.

[5] Vide contexto da citação no artigo “Tecnologia, Inovação, e Transformação: A Arte de Quebrar Paradigmas”, de autoria de Eduardo Chaves, disponível em seu Blog Liberal Space. Disponível em: https://liberal.space/2011/06/07/tecnologia-inovacao-e-transformacao-a-arte-de-quebrar-paradigmas/. Acessado em 17/01/2019.

Sudbury Valley School: Apresentação aos Brasileiros

Sudbury Valley School: Apresentação aos Brasileiros

Eduardo Chaves & Paloma Chaves

Sudbury Valley School (SVS) é uma escola criada em 1968 – começou a operar em Setembro, mês em que tem início o ano letivo nos Estados Unidos. Fez 50 anos, portanto, no mês passado. Já passou bem da meia idade. Mas seus fundadores continuam a demonstrar um frescor juvenil em suas ideias e, mais importante, em sua prática.

SVS de certo modo reflete a radicalidade desse ano marcante na história mais recente do mundo ocidental. Na França, o movimento de Maio de 1968 declarou, em defesa da liberdade, que é proibido proibir. A SVS foi criada em cima de um postulado semelhante que também é uma defesa radical da liberdade – no caso, da liberdade de aprender: além de ser proibido proibir, também é proibido obrigar. Essa é outra face da proibição de proibir: a proibição de obrigar. Uma face proíbe que eu seja proibido de fazer o que quer que seja que eu deseje fazer. O outra proíbe que eu seja obrigado a fazer o que quer que seja que eu não deseje fazer. Esta interdição, aplicada à educação, implica um conjunto de radicais proibições:

  • Ela proíbe que eu seja obrigado a seguir um currículo formulado por terceiros, em geral educadores que se julgam, mais do que especialistas, seres iluminados;
  • Ela proíbe que eu seja obrigado a engolir um cânon integrado pelas grandes obras de renomados autores do passado, sejam eles do ocidente ou do oriente, do norte ou do sul;
  • Ela proíbe que eu seja obrigado a ficar quieto e prestar atenção enquanto professores, supostamente depositários do conhecimento socialmente construído no passado, tentam fazer minha cabeça;
  • Ela proíbe que eu seja avaliado à minha revelia para que terceiros afiram o quanto eu absorvi e assimilei das informações e dos conhecimentos que professores tentaram me transmitir;
  • Ela proíbe que meus interesses sejam forçosamente canalizados para o atingimento de padrões (standards) que eu me recuso a aceitar mas que, supostamente, definem o que uma pessoa bem educada deve saber, deve saber fazer e deve fazer ao fim de sua escolarização…

Mas a radicalidade da SVS vai mais adiante ainda…

Alguém pode inquirir se uma organização fundada nessas premissas pode se designar como uma escola. A resposta que a SVS dá a essa pergunta é claramente afirmativa. Uma escola é um ambiente privilegiado de aprendizagem em que as pessoas – crianças, adolescentes e mesmo adultos – livremente aprendem, e que foi estruturado para que ali elas não só aprendam em liberdade mas, também, aprendam a exercer a sua liberdade em comunidade, vale dizer, respeitando iguais direitos de todos.

Essa visão da educação e do papel da escola é mais radical do que a apregoada por defensores de home schooling (educação no lar) ou mesmo de unschooling (educação sem escolas). No caso tanto de uma como de outra dessas alternativas, não se garante ao aprendente um ambiente de aprendizagem livre da pressão da autoridade da família, em especial dos pais. Essa autoridade, ainda que exercida com a melhor das intenções, em geral limita, cerceia e constrange, mesmo que sutilmente, a liberdade de aprender do aprendente e lhe tolhe o direito de ser o protagonista de sua própria aprendência… “Por que você não lê / vê / faz isso, em vez daquilo?” “Por que a gente não visita esse site?” “Por que a gente não vai junto àquele museu de história natural? Garanto que vai ser divertido…” As tentativas de controle e manipulação mais difíceis de resistir frequentemente são aquelas fundadas, não na malevolência, mas nas boas intenções decorrentes da bemquerência

A SVS é parecida com uma república autodirigida de aprendentes. Ela tem documentos que funcionam como sua constituição (carta magna), suas leis ordinárias, suas normas práticas. Esses documentos foram aprovados em assembleias universaisda escola, que funcionam como seu congresso legislativo, em que cada participante da comunidade tem um voto e todos os votos têm igual peso: tanto o dos fundadores da escola como os dos membros mais novos da comunidade… E ela tem uma Suprema Corte, chamada de Judicial Committee, eleita pela comunidade, que se reúne semanalmente para adjudicar denúncias de violação das leis e das normas, indicação de que determinados membros da comunidade descumpriram sua carta maior, reclamações acerca de condutas de qualquer um da comunidade que parecem inadequadas e precisam ser discutidas para, se for ocaso, ser normatizadas.

Ou seja: a liberdade, no seio da SVS, não é incompatível com a lei e a ordem. Pelo contrário: é a existência da lei e da ordem que torna a liberdade possível e viável.

Como a liberdade de aprender é um princípio incorporado aos mais elevados documentos que regem a vida da comunidade, essa liberdade opera como um trunfo que serve para derrotar qualquer tentativa, seja ela dos fundadores ou do staff da escola, de fazer a cabeça dos aprendentes mais jovens, de doutrina-los, de limitar seus horizontes e de impedir que eles usem seus saberes e saber fazeres, sua criatividade, e sua liberdade para livremente definir seu projeto de vida pessoal e trabalhar para que se torne realidade.

A escola não tem diretores, nem professores, nem funcionários, enquanto tais: tem um staff. A autoridade é investida na assembleia da escola, que é soberana, e que, jurídica e tecnicamente, hoje é dona da escola. Em princípio, nada impede que o fundador da escola, nosso amigo Daniel Greenberg, seja demitido da escola. Isso pode parece um absurdo mas a comunidade leva a sério as suas responsabilidades, tanto no plano pessoal como no coletivo.

A escola é pequena. No momento tem cerca de 140 aprendentes: cerca de 130 que poderiam ser chamados de alunos, cuja idade varia de quatro a vinte anos, e oito que fazem parte do staff. Esses oito ganham um salário para trabalhar na escola, assumindo diversas tarefas. Não há a figura do diretor nem a figura de professores.

Que pais têm coragem de colocar seus filhos numa escola assim, que literalmente afirma não ensinar nada, não tem currículo, não tem aulas, não tem avaliações na forma de testes, provas e exames? Daniel Greenberg esclarece que são basicamente dois os perfis: aqueles que acreditam na proposta libertária da escola e aqueles que já tentaram quase todas as demais escolas e não ficaram satisfeitos com os resultados…

Certa vez, em 2003, ao ser perguntado a respeito do que a escola fazia com pessoas matriculadas nela que não demonstrassem nenhum interesse em aprender alguma coisa, Daniel Greenberg, o idealizador e principal fundador da escola respondeu que essa hipótese é basicamente nula, porque colocando cerca de 140 pessoas num mesmo ambiente por pelo menos cinco horas por dia (exigência do Estado de Massachusetts, mas cada um decide quando serão cumpridas suas cinco horas em cada dia), e dando a cada um tempo para explorar as alternativas antes de decidir, sem pressões, com base em seus talentos e seus interesses, o que ele gostaria de aprender, na escola, e, oportunamente, de ser, na vida, todos iriam descobrir pelo menos uma paixão que poderia se tornar um projeto de vida e, mais tarde, uma vida vivida.

Indagado a respeito de qual a idade mais elevada em que um aluno resolveu, por exemplo, aprender a ler e escrever, Daniel Greenberg disse que foi treze anos (para um aluno que ingressou na escola aos quatro). Ao ser indagado sobre (a) se os pais não ficaram preocupados e (b) se o aluno tornou-se fluente na leitura e na escrita depois de quantos anos, as respostas foram objetivas e não tergiversaram: quanto à primeira, os pais acreditavam na proposta, e, por isso, não se abalaram, até porque seu filho estava aprendendo uma série de outras coisas importantes em sua vida na escola; quanto à segunda, antes de chegar aos quinze anos completos, em menos de dois anos, portanto, o aluno “atrasado” lia e escrevi tão bem quanto os melhores leitores e escritores da escola.

A escola definitivamente não tem um viés academicista. Se alguém resolve estudar música a fundo, para criar uma banda quando sair da escola, ou se tornar um concert pianista, ok; se resolve aprender a cozinhar para um dia se tornar um chef, ou um dono de restaurante que sabe o que faz, ok; se resolve tornar-se um mecânico de automóveis, ou um carpinteiro, ou um pedreiro, também ok; se resolve continuar seus estudos em Harvard, MIT, Boston University, todas as três vizinhas da escola, ok também – há alguns Ph.D. entre os ex-alunos. Um dos princípios básicos da escola é que não importa, para a instituição, e não deveria importar para os pais, o que os aprendentes resolvem fazer de suas vidas – mas importa que eles venham a fazer com excelência o que escolherem fazer.

Há uma questão que nos intriga cada vez que nos deparamos com experiências inovadoras bem sucedidas, especialmente uma como esta, com cinquenta anos de estrada. Se o sistema educacional, digamos, convencional, tem apresentado resultados tão ruins, mesmo na educação básica de países como os Estados Unidos, por que uma ideia como a de Sudbury não se espalha para todas as escolas? Na opinião de Daniel Greenberg, a razão é simples. As pessoas não querem, de verdade, arcar com o alto nível de responsabilidade que a liberdade implica. É muito mais fácil ser conduzido, ter alguém que tome as decisões e assuma a responsabilidade pelos eventuais problemas decorrentes das escolhas feitas.

Sexta-feira passada, 12/10, estivemos lá, a Paloma e o Eduardo, acompanhados de uma prima da Paloma, Denise Machado Leme, concert pianist, que também mora na vizinhança da escola, mas não a conhecia. Eduardo ficou conhecendo a escola no início dos anos 2000, e, em 2003, convidou Daniel Greenberg, seu principal fundador, para participar de uma Mesa Redonda num Congresso organizado pelo Instituto Ayrton Senna e patrocinado pela Microsoft Informática Ltda. (Microsoft Brasil), cuja coordenação técnica ficou a seu cargo. O congresso está mencionado no artigo “Sudbury Valley School”, publicado por Eduardo, em seu blog Chaves Spacehttps://chaves.space/2018/10/14/sudbury-valley-school/. Nesse artigo há mais detalhes sobre a visita dos três à SVS.

Por enquanto, é isso. Voltaremos à carga.

Eduardo e Paloma Chaves

Em Harvard, Cortland e Chicago, de 12 a 17 de Outubro de 2018.

A Educação Integral de Anísio Teixeira e a Educação Comunitária de Moacir Gadotti

Em seu relato sobre a Escola Parque da Bahia, Anísio Teixeira propôs um modelo de escola de período integral que oferecesse aos alunos “experiências de educação primária, que revelasse aos seus habitantes a importância da educação para solução de seus problemas de vida e pobreza”.

A escola seria dividida em dois espaços distintos: A Escola-Classe seria um espaço de educação formal, inclusive organizado de forma seriada, com grade curricular, etc. O outro espaço seria a Escola-Parque, em que os alunos se organizariam “dominantemente pela idade e tipo de aptidões”, em grupos menores que os da Escola-Classe, para participar de atividades de trabalho, educação física, atividades sociais, artísticas e de organização e bibliotecas.

Na Escola-Parque, o aluno teria a oportunidade de participar de forma ativa da comunidade escolar, desenvolvendo competências importantes de cidadania e autonomia, além de vivenciar experiências diversificadas de educação, em oficinas, atividades esportivas, teatro e demais atividades artísticas, etc.

Já a proposta de Gadotti, em seu artigo “A questão da Educação Formal/Não-Formal”, é a de que a Educação Não-Formal fosse reconhecida como um importante complemento da Educação Formal, por meio de atividades educativas na própria cidade.

Na realidade ele não pretende colocar a Educação Não-Formal em oposição à Educação Formal, pelo contrário, ele pretende aproximar os dois modelos para que de fato a formação dos alunos seja completa e significativa.

Não dá para falar em Educação Comunitária sem pensar em Educação Democrática, por isso Gadotti, enfatiza que a Escola Cidadã é parceira da Cidade Educadora. Aliás, ele vai além, sugerindo que uma somente existe graças à existência da outra, isto é, uma Escola Cidadã, participativa, pertencente à comunidade só pode existir se a comunidade também for ativa, que se apropria dos seus espaços e os transforma em Cidade Educadora.

Sob essa perspectiva o foco do trabalho da Escola Formal seria o de desenvolver a cidadania em cidadania. Seria criar uma nova cultura em relação ao espaço público, para que de fato este fosse encarado como “público”. Talvez a proposta de Gadotti busque a derrubada dos muros da escola, em um movimento de duas vias, isto é, a escola se empenhe para sair de seu mundo fictício, e entrar no mundo real, comunitário, e a comunidade, por sua vez, se aproprie desse espaço que de fato o pertence, participando de forma ativa em suas ações.

Tanto Gadotti quanto Anísio sonham com a Educação Democrática, porém suas propostas se diferenciam no fato de que Anísio gostaria de “criar” uma espaço diversificado de aprendizagem significativa, e para Gadotti não é necessário se criar esse espaço, uma vez que ele já existe, sendo a própria cidade.

Em Salto, 18 de Março de 2018.

(Nota: Este artigo foi escrito e publicado, originalmente, em um antigo Blog meu, em 23/03/2006)

Sobre Intolerância Política e Visão Dicotômica de Mundo

Sou a prova viva de que a intolerância política não predomina nem à esquerda e nem à direita do espectro político, e de que é possível superarmos uma visão dicotômica de mundo.
 
Tenho muitos amigos que se vêem e se classificam como de esquerda, que discordam veementemente de algumas ideias minhas. Embora existam alguns poucos intolerantes, a maioria desses amigos sente liberdade para me falar dessa discordância explicitamente, mas nem por isso me trata com desrespeito ou me exclui de seu círculo de amizades. Mais do que isso, eles são capazes de trabalhar em parceria comigo especialmente em projetos que não envolvem diretamente esses pontos de divergência.
 
Da mesma forma tenho muito amigos que se vêem e se classificam como conservadores de direita, que discordam veementemente de algumas ideias minhas. Embora também haja os radicais, a maioria desses amigos também não tem problema em dizer explicitamente que discorda de mim, mas também não me trata com desrespeito ou me exclui de seu círculo de amizades. Mais do que isso, eles também são capazes de trabalhar em parceria comigo em projetos que não envolvem diretamente esses pontos de divergência.
 
É verdade que eu não me vejo e nem me classifico como alguém de esquerda ou de direita. Sendo assim, não me sinto do lado oposto de nenhum desses meus amigos, havendo muitos aspectos em que estou de pleno acordo com ambos os lados. Isso facilita o processo. Talvez se eu me visse como alguém que está do lado oposto, eu dificultasse essa aproximação.
 
Porém, embora eu não me veja do lado oposto (por não me sentir plenamente representada por nenhum lado), a verdade é que a maioria dos meus amigos de esquerda me vê e me classifica como sendo de direita, e muitos dos meus amigos de direita, me vêem como alguém muito influenciada pelas ideias da esquerda. Portanto, se eles fossem intolerantes, não me aceitariam e ponto.
 
A questão fundamental da intolerância para mim está na representação linear que temos do espectro político. Afinal, a política é uma área muito abrangente e complexa para ser representada apenas em uma imagem linear.
 
Minha visão de mundo, minhas crenças, meus valores, minha história de vida e tudo o mais, compõem minha posição política. Como dizia Paulo Freire, todo ato é um ato político! A forma como eu educo as minhas filhas, como eu me relaciono com meu marido, minha família e meus amigos, como eu encaro o meu trabalho (no meu caso, como eu lido com o processo de educação dos, assim chamados, meus alunos), como eu administro minhas finanças, meus funcionários (atualmente, só os domésticos), como eu lido com a minha espiritualidade, e até a forma como eu crio os meus animais de estimação, revelam minhas convicções políticas! Meus hábitos de consumo (vestimentas, alimentação, lazer, patrimônio), meu estilo de vida, são atos políticos.
 
Ora, se tudo é político, e se tudo é tanta coisa, como uma escala linear será capaz de representar a dimensão política da minha vida?
 
Uma das coisas que eu gostava na Escola Lumiar, onde tive o privilégio de trabalhar, era do currículo em forma de Mosaico. Um mosaico é composto por diversos pontos que possibilitam uma infinidade de combinações diferentes. Cada combinação forma uma imagem única, embora com vários pontos em comum com outras imagens ou realidades.
 
A ideia do mosaico permite tanto uma abordagem por afinidades, de identificação de pontos em comum, quanto uma abordagem pela pluralidade, de identificação pela diversidade.
 
Além do problema da linearidade, outro aspecto que me incomoda no espectro político é sua aparente ausência de movimento. As coisas parecem ser estáticas. Parecem favorecer um rótulo perpétuo.
 
Para mim faz muito mais sentido um mosaico, do que uma escala linear, quando eu penso em política. E não um mosaico pobre, de duas cores. Mas um mosaico multicolorido, com todas as cores tão embaralhadas, que parece até que elas se movimentam, se misturam, ora puxando mais para um tom, ora puxando para outro. Eu posso até destacar duas, dentre as diversas cores, para observá-las e contrapo-las, eventualmente. Mas quando eu olho para o todo, as cores se misturam novamente, e deixam a visão muito mais rica e agradável.
Por mais pluralidade e convergência na política!
Em Salto, 19 de Novembro de 2016.

e-Portfólio – Curso Tecnologias Digitais e Metodologias Ativas

Há uma semana iniciei o curso a distância Tecnologias Digitais e Metodologias Ativas, ministrado pelo Prof. José Moran e pela Profa. Denia Falcão.

O curso começou com um Hangouts onde nos apresentamos, conhecemos um pouco a respeito dos colegas que estão conosco nesse projeto, conhecemos uma visão geral do curso e tiramos algumas dúvidas práticas sobre o uso de alguns recursos digitais que utilizaremos ao longo das nove semanas de curso.

Hoje teve início o Tema 1: Aproximação. Uma das atividades envolve a análise da minha própria prática docente. Essa análise deverá ser publicada em um e-Portfólio (portfólio digital). Para isso eu utilizarei este meu Blog velho de guerra.

Nas próximas semanas, portanto, publicarei aqui as atividades relacionadas ao meu e-Portfólio, utilizando a hashtag #e-portfólioTDMA.

Espero que esse material seja útil, também, para os leitores deste Blog.

Em Salto, 22 de Agosto de 2016.

Sobre ser Bela, Recatada e do Lar…

Todas nós temos anseio pelo que é selvagem. Existem poucos antídotos aceitos por nossa cultura para esse desejo ardente. Ensinaram-nos a ter vergonha desse tipo de aspiração. Deixamos crescer o cabelo e o usamos para esconder nossos sentimentos. No entanto, o espectro da Mulher Selvagem ainda nos espreita de dia e de noite. Não importa onde estejamos, a sombra que corre atrás de nós tem decididamente quatro patas.

 (Clarissa Pinkola Estés – Mulheres que Correm com os Lobos)

Passada a indignação inicial, acho que já consigo pensar um pouco melhor sobre o assunto.

Historicamente a mulher foi oprimida pela sociedade machista, que impôs um rígido padrão de comportamento onde ela foi, com sua “fragilidade tipicamente feminina”, subestimada, subjugada e relegada a tarefas “menos complexas”, que não exigiam dela grande capacidade intelectual.

Se de um lado nunca se exigiu grande coisa de sua capacidade intelectual, de outro se exigiu muito de sua capacidade moral! Mulher precisa ter um comportamento moral irrepreensível! Não pode ter desejo sexual, por exemplo. Sua sexualidade precisa estar sob controle, contida, represada.

Já o homem pode tudo. Pode até “pular a cerca”, afinal, ele é homem, e homens são “fracos” nessa área. Eles só são fortes intelectual e fisicamente. Além disso, a sexualidade masculina é muito importante para ele, por isso precisa ser levada em consideração. Já a feminina “não existe”, por isso não precisa ser considerada.

Muitas mulheres, ainda hoje, se empenham para ser exatamente essa moça bela, recatada e do lar. Elas até podem trabalhar fora de casa, principalmente se não forem ricas, se não tiverem a sorte que a Marcela Temer tem de ter alguém que a sustente. E ela até pode ter algum destaque em sua carreira profissional. Mas não muito. Não pode brilhar mais que o marido. E, principalmente, não pode permitir que a profissional cresça em detrimento da esposa e da mãe… Jamais!

Caso algum filho fique doente, a profissional deve jogar para o alto todos os seus compromissos para se dedicar à sua função de mãe perfeita. Se o marido precisa de alguma ajuda, sem titubear a profissional larga imediatamente suas responsabilidades e corre para ser a esposa perfeita. A profissional não precisa ser perfeita. Já a mãe e a esposa precisam. E ser perfeita não passa de sua obrigação. Não é mérito algum.

O homem, por sua vez, não precisa se preocupar com essas coisas. Se em algum momento faz algum sacrifício dessa natureza por sua família, ele demonstra extrema generosidade, e é merecedor de todos os elogios possíveis, além da gratidão eterna de sua esposa.

Durante muitos anos eu fui essa mulher que me empenhava para ser bela, recatada e do lar. Até escova definitiva eu fiz em meu cabelo, durante anos, para contê-lo, para ficar mais adequada ao padrão de beleza vigente. Durante muitos anos fui a “esposa perfeita”, recatada, a mãe perfeita, que se dedicava, quando não exclusiva, prioritariamente às filhas.

Do lar eu não podia ser, por força de circunstância, embora, tenha até tentado. Fiquei alguns anos sem trabalhar para me dedicar exclusivamente ao papel de mãe. Mas a pressão foi tão forte, em função dos recursos financeiros limitados, que eu acabei cedendo e, aos 25 anos, voltei a trabalhar, mas jamais com intenção de me destacar em minha carreira. Eu precisava contribuir financeiramente com minha família. Era “por eles, não por mim”.

E assim eu vivi muitos anos de minha vida. E a igreja sempre teve papel importante nesse processo. Até que um dia as coisas mudaram (mas não cabe agora eu entrar em detalhes sobre como foi esse processo)…

Porém, vale destacar algo muito importante que eu descobri nesse momento: Mais importante do que ser bela, recatada e do lar, é parecer ser. Parecer é mais importante do que ser. E aí está o maior problema.

Muitas mulheres se esforçam para parecer ser o que não são. E fazem isso de forma tão sistemática, que acabam enganando não somente aos outros, mas a si próprias! E isso é muito triste.

Não há nenhum problema em ser bela. E embora possamos até fazer algumas coisas que contribuam para nossa beleza, muitas vezes a beleza acontece sem que seja necessário qualquer esforço. Existem mulheres naturalmente lindas. O problema é quando a beleza se torna obrigatória, sob pena de quem não a possuir, não ser aceita na sociedade. E especialmente quando essa beleza, para ser considerada beleza, precisa seguir um padrão específico: loira, de cabelo liso, preferencialmente de olhos claros, com uma relação peso x altura dentro de um padrão de proporcionalidade específico (Marcela?).

Também não há nenhum problema em ser recatada (reservada, modesta, singela, despretensiosa, austera, comedida). As mulheres não precisam querer ser o centro das atenções. Não precisam se destacar por serem comunicativas, extrovertidas, ativas, líderes, autoridades, etc. O problema é quando elas não podem ser nada disso, sob pena de serem mal vistas, “mal faladas”, inadequadas.

Do mesmo modo, não há nenhum problema em ser “do lar”. As mulheres não precisam exercer nenhuma profissão para ter seu valor reconhecido. Além disso, considero um privilégio poder cuidar da casa e dos filhos. Não é tarefa fácil, diga-se de passagem. Isso sem contar a importância dessa função para a formação dos filhos. Quantas crianças estão abandonadas à própria sorte, por não terem pai ou mãe, e vivem na rua, ou, na melhor das hipóteses, depositadas em uma escola. O problema é a mulher ser criticada por trabalhar fora, e ser responsabilizada por sua eventual ausência no lar em função do trabalho que exerce, enquanto o pai, ou marido, é valorizado justamente por ser trabalhador, independentemente de sua omissão em seu papel de pai.

O problema é a valorização de um padrão de beleza e comportamento específicos em detrimento de outras tantas possibilidades diferentes. E alguém pode até dizer que a reportagem, em nenhum momento, quis dizer que esse é o padrão que deve ser valorizado, senão que estava apenas falando do padrão de Marcela.

Mas, por “coincidência”, esse padrão de Marcela foi o que imperou durante muito tempo, oprimindo mulheres que não se enquadravam nele. Depois de tanta batalha, começando, talvez, com as sufragistas inglesas, e em seguida as americanas, que lutaram para que as mulheres tivessem o direito de ser ativas na sociedade, escolhendo seus representantes políticos. E depois delas vieram tantas outras, e foram tantas as conquistas. Por que, agora, uma matéria de revista começar a valorizar justamente um estigma do qual foi tão difícil que a mulher se livrasse? É, no mínimo, uma escolha muito infeliz sobre como abordar a vida de Marcela.

Eu me lembro do dia em que ganhei de minha amiga Ariadne Carozzi o livro “Mulheres que Correm com os Lobos”, de Clarissa Pinkola Estés. Foi libertador…

Lendo as histórias do arquétipo da mulher selvagem, adquiri consciência a respeito do lobo selvagem que estava dentro de mim. De repente tudo fez sentido. De repente, os cachos voltaram aos meus cabelos. De repente eu não precisava mais corresponder às expectativas da sociedade machista que ainda insiste em ditar como a mulher deve se comportar. De repente eu podia ser eu mesma, com minhas virtudes e meus defeitos. E ser aceita. E respeitada. E amada.

Em Salto, 22 de Abril de 2016.

Projeto Âncora

Equipe IFSP

Como parte de uma das atividades do Grupo de Pesquisa sobre Pedagogias Alternativas do qual sou membro, no IFSP (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo), tive a alegria de conhecer pessoalmente o Projeto Âncora esta semana.

Há muito tempo me lembro de ter ouvido o querido José Pacheco falar desse projeto, do qual ele faz parte, e eu tinha muita vontade de conhecê-lo de perto.

Duas outras vezes na vida eu tive o privilégio de experimentar essa sensação. A primeira foi em 2005, quando conheci a Escola Lumiar, em São Paulo; a segunda, em 2010, quando conheci a Escola da Ponte, em Vila das Aves, Portugal. Cada uma delas foi uma experiência encantadoramente única, e no Projeto Âncora, em Cotia, não foi diferente.

O Projeto Âncora teve início em 1995 por iniciativa de Walter Steurer, e até 2011 era apenas uma ONG que, dentre outras atividades, atendia crianças no contraturno da escola, com oficinas diversas, como Circo, Mosaico, Skate, Música…

No ano em que Walter “virou natureza”, a ONG decidiu virar escola. Mas não uma escola como aquelas que abrigavam as crianças da ONG no turno. Eles queriam uma escola diferente, especial. Daí a vinda do José Pacheco para ajudar nessa missão.

Placa Sr. Walter

A escola faz lembrar uma boa mistura da Ponte com a Lumiar… Os dispositivos pedagógicos, como o roteiro e o planejamento, além dos formatos de agrupamentos de alunos (Iniciação, Desenvolvimento e Aprofundamento), são similares aos da Ponte. Mas o currículo totalmente flexível, com foco em Competências e Habilidades, em que os conteúdos aparecem de acordo com o interesse dos alunos, é mais parecido com o da Lumiar.

A vocação de ONG, com suas oficinas fantásticas, é uma característica tão marcante quanto peculiar do Projeto Âncora. A ONG e a escola se misturam, harmoniosamente, sem parecer ONG, e sem parecer escola. Sorte dos alunos…

Os professores, lá chamados de tutores, têm pelo menos dois papéis bem distintos, tal qual acontece na Lumiar. De um lado, eles orientam grupos de aproximadamente 15 alunos, na condição de parceiros, em seu percurso de aprendizagem, ajudando-os na construção e execução de seu roteiro pessoal de estudos, e em seu planejamento diário (como os tutores da Lumiar). De outro, eles conduzem os alunos nas oficinas e demais projetos que acontecem na escola (como os “mestres” na Lumiar). Mas no Âncora os tutores desempenham os dois papéis, e na Lumiar, cada um desempenha seu papel. Outra diferença é que no Âncora são os alunos que escolhem seus tutores.

Fomos conduzidos pelos alunos para conhecer a escola, como na Ponte. E eles são adoráveis…

Abaixo algumas fotos, para guardar na memória e no coração. ❤

 

Em Salto, 7 de Abril de 2016.

Matética: A Arte de Aprender

Enquanto estava elaborando o “Plano de Ensino” de uma das disciplinas que ministrarei a partir do início do ano letivo de 2016, no IFSP – Campus Capivari (a saber, História da Educação e Psicologia da Educação), fui provocada pelo meu marido e mentor Eduardo Chaves, e estou pensando nisso até agora…

Não me considero uma professora tradicional. Pelo contrário. No espectro educacional me vejo muito mais próxima do extremo da inovação do que do extremo da tradição. Não sou o tipo de professora que se sente confortável em cima do palco da sala de aula falando enquanto os meus alunos ouvem. Entendo que a aprendizagem é muito mais importante do que o ensino, e por isso, meus alunos precisam ser protagonistas em sala de aula. Não vejo meus alunos como uma tabula rasa, e nem tampouco como pessoas que nasceram prontas, mas entendo que a partir da interação (diálogo) com o mundo, e com as outras pessoas, eles aprendem. Aprendizagem ativa, para mim, é (quase) um pleonasmo vicioso, pois não seria aprendizagem se não fosse ativa.

Educação, para mim, é muito mais do que um processo de transmissão de conhecimentos (nem acredito que seja possível transmitir conhecimentos… quando muito, informações, que eventual e oportunamente podem ser transformadas em conhecimentos pelos alunos, de forma ativa). Nem acho que o papel da escola se restrinja a transmitir o legado cultural produzido pelas gerações passadas às gerações mais novas.

Educação, para mim, é um processo de desenvolvimento humano, que se inicia no nascimento e só termina quando a vida acaba. Educação, portanto, é um processo que acontece ao longo de toda a vida, como afirma a UNESCO, e não apenas na escola.

Aprendizagem, por sua vez, em minha concepção, não é o processo de assimilação de conteúdos ensinados pelos professores, mas sim um processo de desenvolvimento de competências, que envolve conhecimentos (inclusive os produzidos pelas gerações passadas), habilidades, valores, atitudes, etc.

Essa visão de educação e de aprendizagem, a meu ver, é suficiente para me caracterizar como uma professora não tradicional.

Trabalho com colegas que também se consideram inovadores, que proporcionam aos seus alunos experiências de aprendizagem muito significativas, baseadas em projetos, e focadas na resolução de problemas, etc.

Pois bem… Apesar de tudo isso, eu, e todos esses meus colegas, estamos fazendo um “Plano de Ensino”, em vez de um “Plano de Facilitação da Aprendizagem”, por exemplo. A despeito dessa concepção pedagógica, os recursos que listamos para utilizar com os alunos estão classificados como “Recursos Didáticos”, em vez de “Recursos Matéticos”.

Sim, matéticos. Conforme explica o Eduardo em um post de 2006 (10 anos atrás!), se a didática se refere à arte de ensinar, a matética se refere à arte de aprender. Se o foco do nosso trabalho em sala de aula está na aprendizagem, já passou do tempo de repensarmos alguns termos que estão tão arraigados em nosso vocabulário, que nem pensamos mais sobre o significado deles.

Como disse o Eduardo, acho que somente o Papert e ele costumam utilizar esse termo. Nem o Google acredita quando a gente faz uma busca por essa palavra. Ele logo sugere a palavra Matemática no lugar…

Por que ninguém fala em Matética nas escolas? Será que é porque ainda é o professor, com seu ensino, que está no centro do processo?

Em Salto, 14 de Janeiro de 2016.

A Questão da Progressão Continuada na Educação

Encontrei um link para uma reportagem, no Facebook, cujo título era: “Cidade no sertão acaba com progressão continuada e vira modelo de educação no Brasil”.

O curioso é que a reportagem listou uma série de medidas interessantes tomadas pela Prefeitura de Sobral, no Ceará, para melhorar a qualidade da educação em seu município, mas o fim da progressão continuada não foi sequer mencionado…

Não vou, nesse momento, discutir as estratégias que muitas escolas do Brasil, inclusive de Sobral, têm adotado para se sair bem em avaliações externas que se propõem a medir a qualidade da educação. Vou me ater à questão da progressão continuada que já é controversa o suficiente para render um post. Também não irei me aprofundar nesse assunto, mas apenas levantar algumas questões.

Vejo muitos problemas na forma como o sistema de progressão continuada está implantado, mas a proposta, em si, na minha opinião, está muito longe de ser ruim. Na verdade, é muito boa!

Sou de uma época em que os níveis de evasão escolar eram absurdos! Dos 100% de alunos que ingressaram comigo na antiga 1a série do 1o Grau, apenas 6% concluíram a última série do 2o Grau! Se fossem feitos testes como o ENEM, naquela época, certamente os resultados seriam muito bons! O nível intelectual constatado desses alunos seria bem elevado! Afinal, eles sobreviveram a um processo de seleção rigorosíssimo, e se mostraram mais aptos, ao melhor estilo darwiniano.

O problema está nos 94% dos alunos que ficaram pelo caminho. Certamente sua ausência serviria para não prejudicar os resultados positivos das avaliações externas, se estas fossem realizadas. Mas alguém parou para pensar que eles foram excluídos do sistema de ensino, em alguns casos, muito cedo, e por isso, pagaram, e ainda pagam, junto com a sociedade, um alto preço?

Não que eu acredite que a escola seja o único lugar em que nos preparemos para a vida e para o trabalho (aliás, talvez a escola seja o lugar em que menos aprendamos coisas de fato importantes para a vida e para o trabalho), mas a escolaridade ainda é um critério importante de seleção no mercado de trabalho. O fato de uma pessoa ter menos escolaridade se traduzirá, na grande maioria das vezes, em menos oportunidades e renda para ela, na sociedade em que vivemos. Por isso o prejuízo pessoal e social gerado quando os alunos se evadem da escola é muito maior do que quando eles concluem o Ensino Médio, ainda que com desempenho escolar inferior à média.

Notem que eu disse “desempenho escolar“. O conjunto de conhecimentos avaliados em provas como o ENEM e outras avaliações dessa natureza, na grande maioria dos casos, só tem relevância para a escola, ou para a instituição que a elaborou, e não para a vida. Quantos profissionais que você conhece precisam ter ótimo desempenho nas diversas áreas do conhecimento, como Química, Física, Biologia, Matemática, Língua Portuguesa, História e Geografia, além de línguas estrangeiras? Como você, que já é um profissional estabelecido no mercado, se sairia nessas provas?

Então, o que exatamente representariam os resultados de avaliações que excluíssem alunos que têm baixo desempenho, segundo os critérios de uma avaliação padronizada, centralizada, externa, tamanho único, distante das diversas realidades que compõem um país de dimensões continentais como o Brasil e que não consegue captar o desenvolvimento de diversas habilidades e competências importantíssimas para a vida real, fora da escola, fora dos vestibulares?

Nesse mesmo sentido, o que querem dizer os resultados das avaliações feitas hoje, com alunos que concluem o Ensino Médio graças ao sistema de progressão continuada, mas que não conseguem ter bom desempenho em todas as áreas do conhecimento?

Aliás, para que servem, afinal, essas avaliações externas, além de gerar rankings nacionais, acirrando a competição entre escolas privadas e até públicas, pautando o currículo de toda a educação básica, tornando-o inchado e cada vez menos relevante para a formação integral de seus alunos?

Em Salto, 03 de Janeiro de 2016

Ano Novo, Vida Nova – trabalho novo, carreira nova

Nunca essa frase feita fez tanto sentido em minha vida, afinal, o ano de 2015 encerra uma série de ciclos importantes. Neste post me aterei à minha vida profissional, embora as grandes mudanças que estão acontecendo envolvam outras esferas importantes de minha vida.

No último dia 10 (10/12/2015), não apenas terminei minha relativamente curta carreira no Colégio Visconde de Porto Seguro (digo relativamente, primeiro porque já passei mais tempo em outros trabalhos, como na Secretaria de Educação de São Bernardo do Campo, por exemplo, onde fiquei por mais de oito anos, e segundo porque, perto de alguns colegas que passaram mais de quarenta anos no Porto, minha passagem por lá, de quatro anos e meio, até que foi rápida), mas também encerro minha carreira nas séries iniciais da Educação Básica, com ênfase no trabalho como especialista em uso da tecnologia na educação. Não que eu vá deixar de lado a tecnologia, até porque nem seria mais possível, mas o meu foco não mais estará na reflexão sobre teorias sobre o uso pedagógico das tecnologias digitais na Educação Básica, uma vez que irei expandir essas reflexões acerca da educação como um todo, em suas diversas dimensões.

A partir do próximo ano iniciarei uma nova carreira no ensino superior. Desde o último dia 11 (11/12/2015) sou funcionária pública federal, docente no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, no Campus Capivari. Lecionarei, inicialmente, no curso de Licenciatura em Química. No próximo semestre serei responsável pelas disciplinas de Psicologia da Educação, para a turma que iniciará o terceiro semestre do curso, e História da Educação, para a turma do primeiro semestre. No caso desta última turma, iniciaremos juntos no ensino superior. Eles como alunos, e eu como professora.

Trabalho com formação de professores há muitos anos, mas sempre na formação continuada, não na inicial. Desde quando me formei no curso de Pedagogia sonhava em trabalhar com formação inicial de professores no então curso de Magistério. O problema foi que o Magistério foi extinto justamente quando eu cursava Pedagogia, e, embora eu tenha até chegado a fazer estágio de regência lá, nunca pude trabalhar efetivamente nessa área. Quando concluí meu Mestrado, em 2012, quinze anos depois, o desejo de ir para essa área ganhou força novamente, e eu esperei até que chegasse o momento certo de mudar.

Eu sempre soube que o trabalho que eu desenvolvia na formação de professores para o uso de tecnologias digitais se tornaria, um dia, obsoleto. Quando iniciei, considero que os professores não eram nem imigrantes digitais. Eu diria que eles eram estrangeiros digitais, pois a maioria não tinha sequer contato com a tecnologia digital em sua vida pessoal. Quando era necessário utilizar computadores, eles recorriam a seus filhos ou outras pessoas que pudessem ajuda-los no manuseio daqueles equipamentos. Não raras vezes tive de ensinar professores até mesmo a ligar o computador, pois eles nunca tinham feito isso. Mas eu sabia que esse fenômeno não duraria muito tempo. Era um período de transição, pois os nativos digitais já estavam no mundo, e em breve eles cresceriam e ocupariam um lugar à frente das salas de aula.

Quando eles começaram a chegar à docência, meu trabalho deixou de ser ajuda-los a se apropriar das tecnologias como um todo, e se concentrou na apropriação do uso pedagógico das tecnologias, pois, embora eles já utilizassem tecnologias digitais em sua vida pessoal, em sua experiência como alunos nunca tinham usado computadores na escola, e eles não conseguiam enxergar as possíveis contribuições do uso das tecnologias para a aprendizagem na escola. Entretanto, o tempo passou, e muitos desses alunos que estavam na escola ao longo dos últimos 15 anos, experimentando o uso das tecnologias já como alunos, chegaram à posição de professores. Portanto eles já possuem um repertório digital pedagógico, que dispensa o trabalho de um profissional da minha área no dia-a-dia.

Não quero dizer com isso que essa fase já esteja superada. Ainda há muitos professores imigrantes digitais que precisam de parceiros mais experientes nessa área, mas aos poucos os próprios professores nativos digitais poderão ser esses parceiros, e dentro de alguns anos, acredito, o profissional de tecnologia educacional como hoje o conhecemos, se tornará absolutamente dispensável.

Muitos desses profissionais têm se reinventado, e têm se dedicado a uma formação mais técnica, para atuar em uma frente que, conforme eu discuti no artigo Novos Rumos na Área de Tecnologia na Educação, está ganhando força. Trata-se do trabalho com robótica educacional, linguagem de programação, produção de games, além de outras experiências relacionadas à chamada “Cultura Maker”. Esses profissionais que usam a tecnologia não apenas como ferramenta de aprendizagem, a serviço do currículo, mas como um componente curricular, ou como conteúdo propriamente dito, estão se tornando cada vez mais necessários, e é muito louvável o trabalho que eles vêm desenvolvendo. Acontece que eu nunca me vi como uma profissional da área de tecnologia. Sempre me vi como profissional da área de educação, que usa a tecnologia para favorecer o processo de aprendizagem. Por isso sempre me vi como uma pessoa que foi cooptada pela área de tecnologia, e quem me conhece de perto certamente já me ouviu falar sobre isso.

Agora, finalmente, estou voltando para a área da qual nunca saí. Com um grande desafio: formar professores para um sistema de ensino que caminha a passos largos para a falência. Pretendo, junto com meus alunos, descobrir maneiras de reverter esse processo, ou criar maneiras de transformá-lo radicalmente. Certamente trata-se de um grande desafio, que me dará muito trabalho, que exigirá muito tempo de pesquisa, mas sinto que não poderia ser em momento melhor, e em uma instituição mais apropriada.

Que venha 2016!

Em Salto, 31 de Dezembro de 2015.

A Festa da Morte

Não, não vou escrever sobre o triste fim dos refugiados que temos visto diariamente na Internet e na TV.

Vou escrever sobre um sonho perturbador que tive esta noite, responsável por me tirar da cama antes das seis da manhã em pleno final de semana gordo da Independência.

Talvez esse sonho tenha que ver, sim, com os refugiados, que tornaram a morte algo extremamente corriqueiro. Talvez tenha que ver com a cena de ontem em frente à Catedral da Sé, em que aquele morador de rua, herói, simplesmente não deu a mínima para o risco eminente de morrer, e saltou em cima de seu assassino.

Talvez tenha que ver com a morte de minha querida tia Gledys, há uma semana, em que eu fui avisada de que ela estava mal, nas últimas mesmo, mas tive de adiar minha visita em um dia. Quando cheguei ao hospital, já era tarde. O episódio da tia Gledys ficou marcado também por evidenciar a banalidade que a morte representa para quem lida com ela diariamente. O hospital avisou à família, de seu óbito, quase 24 horas depois do ocorrido! E só avisou porque chegamos ao hospital para visita-la e ela não estava mais no quarto, e pasmem, ninguém do hospital parecia saber onde ela estava… Somente hora depois é que tiveram a decência de pedir ao médico que nos desse a notícia.

Pois bem. Esta noite eu sonhei que tinha uma doença terminal. Eu estava bem, me sentia ótima! Não tinha dor ou qualquer marca que indicasse minha doença. Apenas sabia que dentro de algumas semanas seria “desligada”.

Minha reação não foi desesperada, de alguém que queria lutar pela vida, ou contra a morte. Simplesmente eu aceitei aquela notícia como um fato sobre o qual eu não poderia ou não deveria fazer nada. E ainda me senti privilegiada por saber que teria tempo de me preparar para o momento final. Comecei a pensar em tudo o que gostaria de fazer antes daquele fatídico dia. Quem eu gostaria de ver. Quem eu precisava ver, para acertar coisas que estavam pendentes. Com quem eu gostaria de passar aqueles últimos e especiais momentos.

Então eu comecei a organizar um evento, que mobilizou tantos esforços quanto uma festa de casamento.

Decidi que queria fazer isso em um Resort bem lindo, com piscinas de água quente. Convidei para passar um tempo comigo várias pessoas que passaram pela minha vida. Mas como eu passaria vários dias naquele hotel, distribuí os convidados ao longo dos dias, para que tivesse tempo de passar tempo de qualidade com cada um deles. Afinal, em festas convencionais a gente vê tanta gente ao mesmo tempo, que não consegue sequer conversar com cada um.

Outras pessoas, que não fossem convidadas, também poderiam ir. Sabiam que eu estava lá para me despedir, pois eu divulguei a todos. Podiam chegar, ficar lá um tempo, e depois ir embora.

Foi engraçado encontrar pessoas que eu não via há anos. Pessoas que eu nem imaginei que se importariam em ir até lá para se despedir. Foi bom. Foi melancólico, também, convidar algumas pessoas importantes em minha vida, com as quais existem pendências, e receber uma desculpa como resposta. A pessoa, da família, tinha uma série de compromissos inadiáveis agendados para os próximos dois meses. Eu sabia que, na verdade, ela simplesmente não queria ir até lá se despedir de mim. Acho que ela já havia se despedido antes, e, para ela, eu já havia partido desta para uma melhor…

Foram dias incríveis! As pessoas mais próximas e queridas, ficaram mais tempo comigo. Às vezes batia uma certa ansiedade, tentando imaginar como seria a hora H. Mas eu era tranquilizada pela equipe médica que dizia que, para mim, seria apenas como um sono profundo, bem pesado… Eu adoro dormir profunda e pesadamente e faço isso diariamente. Então eu me tranquilizava e pensava apenas que seria o sono mais longo de minha vida. E que no dia seguinte eu não precisaria acordar para enfrentar as lutas diárias. Eu apenas descansaria.

Para os protestantes, como eu, em tese, a morte é um momento especial de passagem para ir para “os braços do Pai”, como dizemos. O apóstolo Paulo, em Filipenses 1:21, menciona “Porque para mim o viver é Cristo e o morrer é lucro”. Então, em tese, como eu disse, a morte deveria ser bem tranquila. Mas nem sempre é o que acontece na prática. Acho que porque, além de protestantes, somos fruto da cultura ocidental, que nos ensina outras coisas a respeito da morte.

Quando foi chegando o momento, apenas aqueles mais chegados estavam junto de mim. E todos pareciam felizes, gratos por terem passado aqueles últimos momentos incrivelmente agradáveis ao meu lado. Por terem me dito tantas palavras de amor e carinho nos últimos dias. Por terem se divertido e dado tantas risadas comigo naquele lugar maravilhoso. Então fomos para uma sala, fizemos um culto final, todos juntos, em comunhão, com muito amor. Eu me despedi de cada um com um beijo e um abraço bem apertado, com lágrimas nos olhos, como aquelas cenas que vemos nos aeroportos e nas rodoviárias. E entrei em um quarto. E acordei.

Não estava aflita quando acordei. Não estava triste, mas também não estava alegre. Mas sentia uma paz meio estranha. E não consegui voltar a dormir.

Acho que essa ideia de que saber a hora da morte pode ser um privilégio que poucas pessoas têm, já está rondando o meu imaginário há algum tempo. E acho que ela está começando a se consolidar em minha mente. A ponto de não apenas eu ter tido esse sonho que parecia tão real, quanto a ponto de eu começar a desejar que Deus me conceda o privilégio de saber quando a minha hora estiver chegando.

Em São Paulo, 05 de Setembro de 2015.

A Educação e as Verdades Absolutas

Quem de nós nunca acreditou em verdades absolutas?

Especialmente durante nossa vida escolar somos bombardeados com informações que nos são apresentadas como verdades incontestáveis.

Aprendemos, por exemplo, que Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil em 1500; que uma ilha é uma porção de terra cercada de água por todos os lados; que todo ser humano nasce, cresce, se reproduz e morre; que o Brasil encontra-se na América do Sul, abaixo dos Estados Unidos, que fica na América do Norte; dentre várias outras verdades. Quase todas essas verdades são reforçadas por meio dos conhecidos exercícios de “verdadeiro ou falso”, em que apenas uma resposta é verdadeira. E desde muito cedo aprendemos a não pensar sobre a veracidade de fato ou origem dessas informações, afinal, isso é parte do conhecimento historicamente acumulado e ponto.

Não é sem razão que muitos de nós passa a vida inteira acreditando em verdades absolutas. E a maioria passa a vida inteira tentando conhecer esses conceitos, descobertas ou invenções que parecem já ter nascido junto com a humanidade, ou que, quando muito, parecem ter sido criadas por seres iluminados, muito diferentes de nós, pobres mortais.

Há alguns anos eu comecei a entrar em crise em relação a essa ideia de “verdade absoluta”. Na ocasião eu estava retomando a docência no Ensino Fundamental, após passar aproximadamente seis anos afastada da área. Em meu programa curricular estava previsto que eu deveria ensinar aos meus alunos o que era o Efeito Estufa. Então eu tentei resgatar em minha lembrança o que eu sabia sobre esse assunto, e percebi que meu conhecimento era muito superficial. Eu apenas me lembrava que ele era um vilão, um “cara do mal”, que estava tentando acabar com a humanidade.

Decidi então pesquisar um pouco sobre o assunto. Consultei alguns livros didáticos que estavam disponíveis na escola em que eu trabalhava, na rede pública, e verifiquei que eu estava no caminho certo. Mas achei que os livros também falavam muito superficialmente sobre o assunto.

Felizmente eu estava retomando minha carreira na era da Internet. Cheguei em casa e resolvi fazer uma pesquisa em um site de busca muito menos sofisticado do que o atual Google, afinal o ano era 2001, e naquele tempo, não apenas as ferramentas de busca na rede eram precárias, como também o conteúdo disponível para consulta era um sem número de vezes menor do que hoje. Mesmo assim encontrei uma homepage de um estudante de biologia que me apresentou uma versão completamente nova da ideia de efeito estufa.

Segundo aquele estudante, o efeito estufa era um fenômeno natural de concentração de gases na atmosfera, que têm como característica a capacidade de reter o calor do sol. Não são todos os gases que têm essa capacidade térmica, mas os do efeito estufa têm. Graças a essa capacidade, é possível haver vida na Terra. Não fosse o efeito estufa, a temperatura média da terra seria de –18ºC, o que inviabilizaria a sobrevivência senão de todas, da maioria das espécies, incluindo a espécie humana.

Meu mundo caiu… Então eu quis entender como o efeito estufa, de mocinho, havia se tornado um vilão, e descobri que um dos gases do efeito estufa é o CO2, mais conhecido como Gás Carbônico. Com o aumento de emissão de Gás Carbônico na atmosfera, ou seja, com o aumento da poluição do ar, ocorreu uma concentração muito acima do normal desse gás (dentre outros gases), provocando o aumento da temperatura até um patamar que oferece risco ao equilíbrio ecológico.

Então, na realidade, a vilã é a poluição, e não o efeito estufa.

Posso dizer que meus alunos tiveram uma experiência de aprendizagem muito rica, pois percorri junto com eles todo esse caminho, e eles não apenas aprenderam o que era o efeito estufa, conforme estava previsto no meu conteúdo programático, mas também aprenderam a desconfiar de algumas informações que são passadas nos livros como se fossem verdades absolutas.

Pouco tempo depois li uma reportagem na revista Veja (que lamento não ter guardado), que dizia que o quilo estava ficando mais leve. Achei muito interessante o título. Percebi que estava diante da quebra de outro paradigma, afinal nunca havia parado para pensar em quem havia definido que um quilo pesava um quilo, e nem imaginei como e quando isso teria acontecido.

Embora eu não tenha aquela matéria, encontrei um artigo correlato no site da agência FAPESP, escrito em 2005, que explica esse fenômeno (“O quilo não pesa um quilo”), que eu acho que vale a pena ser lido, pois mostra a fragilidade de alguns conhecimentos científicos que são tidos como as verdades mais absolutas possíveis.

Para reafirmar essa fragilidade do conhecimento científico, desde o dia 24 de Agosto de 2006, portanto há cinco anos, toda a Terra foi surpreendida com a notícia de que o planeta Plutão, que sempre foi planeta (desde que eu me conheço por gente), simplesmente deixou de ser, por uma decisão da comunidade científica.

Essas verdades absolutas são contadas aos alunos não apenas do Ensino Básico, mas também, e principalmente, do Ensino Superior. No mundo acadêmico, quando se pronuncia a palavra “científico”, as pessoas parecem ter não apenas a impressão, mas a certeza de estarem falando de uma verdade absoluta.

Hoje cedo vi um link compartilhado em um grupo de discussão do Facebook, que trazia uma reportagem da revista Galileu Galilei abordando exatamente essa questão. A matéria intitulada “Desconfie da Ciência” denuncia outro tipo de distorção que a comunidade científica acaba provocando (com ou sem intenção). A forma como se divulga uma pesquisa científica pode ser muito perigosa, levando as pessoas a acreditarem em fatos que não são verdadeiros.

Que nós educadores estejamos atentos ao conhecimento historicamente acumulado, tendo sempre um olhar crítico, e valorizando muito mais o processo por meio do qual ele foi construído, do que o produto supostamente final desse processo.

E que tenhamos consciência do nosso papel na formação de alunos também críticos, que sejam muito mais autores do que consumidores de conhecimento.

[Este artigo foi originalmente publicado no Blog “Tec Educ” do Colégio Visconde de Porto Seguro, em Agosto de 2011 – http://teceduc.portoseguro.org.br/a-educacao-e-as-verdades-absolutas/]

Robótica na Educação Infantil

O termo “robótica” é usado, em geral, fora da área da educação, para se referir à automação de processos por meio de dispositivos mecânicos eletroeletrônicos programáveis (às vezes chamados de servomecanismos) que, quando acionados, fazem as ações que foram programadas a fazer. O que se chama de “robótica educacional” (ou “robótica pedagógica”) é o uso da robótica em contextos pedagógicos em que o objetivo é levar o aluno a entender o que é a robótica e a construir artefatos robóticos que, com graus progressivamente maiores de complexidade, fazem coisas úteis ou interessantes.

A robótica educacional, portanto, tem sido introduzida nas escolas com muito sucesso desde a Educação Infantil. É evidente que, com crianças pequenas, que ainda não têm maturidade intelectual suficiente para programar as atividades de controladores, motores, sensores, etc., o que se chama de “robótica educacional” é um estágio preliminar e preparatório para o estágio em que os alunos vão de fato lidar com o aprendizado da robótica. Neste estágio preliminar, eles são desafiados a construir objetos e cenários com as peças que normalmente são usadas em construções robóticas reais, assim lidando com as dificuldades inerentes no processo de solução de problemas, inicialmente simples, mas cada vez mais complexos.

Além de servir de fundamento para a aprendizagem de competências mais complexas, que acontecerá nas fases de desenvolvimento subsequentes, a robótica educacional também tem cumprido a função de contribuir para o desenvolvimento de competências, habilidades, atitudes e valores fundamentais para as crianças da própria Educação Infantil.

Minha experiência no trabalho na Educação Infantil atualmente se organiza da seguinte forma: os alunos são desafiados a construir um objeto, em grupo, a partir de uma meta estabelecida, dentro de um tempo delimitado (normalmente bem limitado) e utilizando apenas os recursos disponíveis.

Essa estratégia de definir algumas limitações contribui para o desenvolvimento da criatividade, isso porque as limitações têm a característica de servir de estimulo à criatividade, uma vez que forçam a criança a buscar caminhos alternativos, diferentes dos óbvios, dos mais fáceis.

Antes de iniciar a montagem, em roda, são discutidos os principais elementos que devem ser contempladas no objeto que será construído. Os alunos são estimulados a trabalhar com autonomia, buscando o material a ser utilizado, e se organizando, enquanto grupo, na divisão de tarefas. É importante destacar, no entanto, que a autonomia que é buscada dentro dessa proposta, não prescinde da colaboração. Muito pelo contrário, é uma autonomia que a engloba. Portanto, os alunos contam, sempre que necessário, com o apoio dos próprios colegas e da equipe docente, inclusive, no processo de desenvolvimento da própria autonomia.

Durante a construção são feitas intervenções, problematizações, questionamentos, e são oferecidas dicas de caminhos possíveis para a resolução de problemas, para que os alunos consigam avançar em suas hipóteses e aperfeiçoar suas produções.

Ao término do tempo combinado os alunos apresentam e discutem suas produções. Nesse momento, além de apreciar as montagens dos outros grupos, eles têm a oportunidade de explicar o processo de construção de sua própria montagem, revisitando seu percurso, sistematizando sua aprendizagem

Da forma como está organizada, a robótica educacional contribui para o desenvolvimento de habilidades de comunicação, relacionadas à oralidade, à capacidade de ouvir, de argumentar, de negociar.

Ela permite, também, a exploração de conceitos multidisciplinares como, classificação, formas geométricas, simetria, mecanismos de máquinas simples, esportes, artes, cotidiano, etc. envolvendo áreas como Matemática, Física, Ciências, Arte, dentre outras.

O material estruturado, com formas cores e funcionalidades específicas, favorece grandemente o desenvolvimento do raciocínio lógico matemático.

Por ser organizado dentro de uma rotina clara e com procedimentos previamente definidos, o trabalho contribui para o próprio desenvolvimento da capacidade de organização do aluno.

Dentre outras coisas, a robótica educacional na educação infantil possibilita às crianças, portanto, a compreensão de conceitos abstratos a partir da exploração de recursos concretos.

Ao mesmo tempo que valoriza o lúdico, o brincar, a robótica educacional também busca o vínculo com a realidade, com o mundo real que está além dos muros da escola.

Trata-se de um projeto pautado na resolução de problemas que estimula o espírito investigativo e possibilita que os alunos levantem e testem suas próprias hipóteses, contribuindo, assim, para a formação do pensamento científico.

Na robótica educacional prevalece a prática do “aprender fazendo” em contraposição ao “aprender ouvindo” e ao “aprender lendo”. Mesmo neste estágio preliminar, ela permite preservar, no ambiente pedagógico, em que o aprender vai ser mais e mais em decorrência do ouvir e do ler, o aprender fazendo, hands on, mão na massa.

A vivência de situações de trabalho em equipe permite que os alunos conheçam, desde cedo, a importância e os benefícios da divisão de tarefas, além de estimular o desenvolvimento da capacidade de liderança, de colaboração, de fazer escolhas e assumir suas consequências.

Nas situações em que a meta não é atingida, o aluno aprende ainda a lidar com a frustração, e aprende a avaliar seus procedimentos para desenvolver novas estratégias.

A concepção que está por trás dessa proposta visa, em última instância, ao protagonismo e à autoria dos alunos.

Trata-se, por fim, de um recurso que oferece muita diversão, pois, por ser de interesse do aluno, propicia situações de aprendizagem significativas e, acima de tudo, prazeirosas.

[Este pequeno artigo foi escrito em Junho de 2012 mas não foi publicado até hoje. Após alguns pequenos ajustes, tenho a satisfação de torná-lo público, na expectativa de que ele contribua com o trabalho outros profissionais da educação]

Em São Paulo, 8 de Maio de 2015.

Novos Rumos na Área de Tecnologia na Educação

Quando iniciei minha carreira na área de Tecnologia na Educação, havia uma discussão importante acontecendo, que envolvia não apenas a concepção de uso das tecnologias digitais na escola, mas também o currículo, propriamente dito.

Naquela época, no início dos anos dois mil, ainda predominava o modelo de laboratórios de informática. O custo dos equipamentos ainda era muito alto, por isso as escolas criaram esses espaços com alguns poucos equipamentos para uso coletivo da comunidade escolar. Para organizar esse uso compartilhado, a escola colocou as chamadas “aulas de informática” na grade escolar, garantindo que todos os alunos tivessem acesso aos computadores, em regra, uma vez por semana, durante o período de uma aula. O foco era a inclusão digital. O que seria ensinado nessas aulas ainda não era tão relevante. O importante era que todos tivessem acesso aos computadores.

Os professores, todos imigrantes digitais, não tinham muita familiaridade com as tecnologias digitais nem para uso pessoal, quanto mais para uso pedagógico. Muitos não sabiam sequer ligar um computador. Diante disso, não bastava a escola disponibilizar computadores. Era necessário também providenciar algum profissional que soubesse operar aqueles equipamentos. Donde a contratação, em muitos casos, de um técnico de informática para cuidar do laboratório.

Esses dois fatores (custo dos equipamentos e necessidade de profissional especializado) levaram muitas escolas a terceirizar essa área. Algumas empresas se especializaram em fornecer locação de equipamentos e também mão de obra especializada para manutenção dos equipamentos e ministração de aulas de informática. Algumas dessas empresas, com uma visão, digamos, mais pedagógica, procuravam formar os professores para o uso pedagógico das tecnologias. Mas a maioria disponibilizava apenas um profissional, com perfil mais técnico do que pedagógico, para dar as aulas aos alunos da escola, enquanto os professores de sala de aula, aliviados, se viam livres desse encargo.

Se em um primeiro momento não se deu muita importância ao conteúdo das aulas de informática, não demorou muito para que os professores começassem a questionar não apenas o conteúdo, mas a própria necessidade das aulas de informática.

Os alunos saiam de suas salas para ir até o laboratório aprender conteúdos específicos de informática. Hardware: componentes internos e periféricos; Softwares: sistema operacional, aplicativos básicos (editor de texto, planilha eletrônica e editor de apresentação); e, quando muito, os chamados jogos educativos, que, na época, ainda eram utilizados por meio de CD-ROM. As experiências mais progressistas envolviam a aprendizagem de programação, por meio de aplicativos como o LOGO (embora essa linguagem seja bem anterior aos anos dois mil). Essas experiências eram mais progressistas porque a aprendizagem de programação se assenta no domínio de uma lógica voltada para a solução de problemas — os problemas que o programa deve resolver.

Mas muitos professores ficavam com a sensação de que seus alunos estavam perdendo um tempo precioso de aula, deixando de aprender aquilo que era importante no currículo, para ficar jogando joguinhos no laboratório ou fazendo desenhos utilizando LOGO. Na maioria das vezes esses professores tinham razão.

A discussão que estava acontecendo sobre essa concepção de uso de tecnologia na educação, era justamente em função dessa questão. Em termos de concepção a questão central era: a escola deveria estar a serviço da tecnologia, ou a tecnologia, a serviço da escola? Colocando em outras palavras, a escola, enquanto espaço privilegiado de ensino, deveria incluir em seu currículo conteúdos específicos de informática, ou a informática deveria ser utilizada para ajudar os alunos a aprender o currículo da escola, qualquer que fosse o seu conteúdo?

A opção pela segunda alternativa veio acompanhada de uma demanda. Somente os professores dominavam os conteúdos de sala de aula, enquanto os profissionais com perfil mais técnicos, que entendiam de computadores, não conseguiam fazer essa ponte entre as tecnologias e a educação, vale dizer, os conteúdos curriculares.

Nesse contexto surgiram os profissionais oriundos da área pedagógica que se especializaram no uso das tecnologias digitais. Esses profissionais passaram a ser contratados para ajudar na integração das tecnologias ao currículo escolar. O papel desses profissionais passou a ser muito mais o de formador e parceiro dos professores de (e em) sala de aula, do que de professores de informática. O trabalho não acontecia apenas em sala de aula, uma vez por semana, portanto. O profissional da área de tecnologia na educação e o professor de sala de aula passaram a planejar juntos as aulas e os projetos. As tecnologias passaram a provocar algumas mudanças no próprio currículo da escola, uma vez que elas ampliaram as possibilidades pedagógicas.

Muitas mudanças ocorreram desde então. Afinal, quinze anos se passaram, e quinze anos, na área de tecnologia, é muito tempo!

A Internet mais unidirecional (que disponibilizava informações de um para vários) cedeu espaço para a chamada Web 2.0, mais interativa, possibilitando que usuários comuns, sem conhecimentos técnicos, pudessem disponibilizar informações na rede, em vez de apenas consumir o que era disponibilizado por especialistas. Os Blogs e, posteriormente, as Redes Sociais, permitiram que pessoas se conectassem e interagissem multidirecionalmente (de um para vários, de vários para um e de vários para vários). Isso revolucionou a forma como as pessoas se comunicam e, considerando o papel central da comunicação nos processos de aprendizagem, esse fenômeno também transformou a forma como as pessoas aprendem. Esses recursos possibilitaram que os alunos pudessem usar as tecnologias para exercer o protagonismo, a autoria, passando de consumidores a produtores de informação. Isso não só permitiu, mas motivou e causou muita mudança em sala de aula.

A mobilidade também revolucionou o acesso à informação. A proliferação de tecnologias móveis e convergentes (que integram vários recursos em um único aparelho, cada vez menor, como é o caso dos smartphones) não apenas derrubou o custo das tecnologias, possibilitando a ampliação significativa do acesso a elas, como também possibilitou que as pessoas tivessem acesso à informação em qualquer lugar e a qualquer momento, e não apenas nas aulas de informática, durante uma aula semanal. Dentro da escola, as tecnologias passaram a ocupar todos os espaços, deixando de ficar confinadas aos antigos laboratórios. Fora da escola, as tecnologias passaram a estar presentes na vida real das pessoas, em suas atividades cotidianas, em seus momentos de lazer, de trabalho e de aprendizagem não-formal, aquela que acontece ao longo de toda a vida.

É verdade que o Brasil, um país com dimensões continentais, e que enfrenta tantos problemas sociais e de infraestrutura, ainda não superou integralmente a questão do acesso às tecnologias. Mas pouca gente imaginava, vinte anos atrás, que a inclusão digital se daria tão rapidamente e principalmente através do telefone celular inteligente. Além disso, aqui no Brasil, ainda não podemos desfrutar plenamente de toda o potencial da Internet, envolvendo vídeo, uma vez que o país ainda não dispõe de acesso à Internet de alta velocidade na grande maioria de seu vasto território. Os avanços, porém, são inegáveis, e muitas escolas, tanto privadas quanto públicas, já vivem essa realidade há alguns anos.

Muitos alunos que estavam em sala de aula utilizando essas tecnologias naquele início de século, hoje já estão do outro lado, na posição de professores, utilizando as tecnologias em sala de aula com seus alunos.

Essa nova geração de professores que aos poucos está ocupando a escola, já é nativa digital. Não precisa mais de um profissional que o ajude a integrar as tecnologias ao currículo. Eles não apenas já dominam essas tecnologias para uso pessoal, como também já têm familiaridade com o uso pedagógico delas.

Esse novo cenário levanta algumas questões importantes: Será que em algum momento os profissionais qualificados da área de tecnologia na educação, tão importantes na década passada, se tornarão dispensáveis na escola? Em caso positivo, quanto tempo falta para que isso aconteça? O que acontecerá com esses profissionais quando sua função se tornar obsoleta? Qual o futuro, afinal, das tecnologias digitais na escola?

Alguns países, como o Reino Unido, que certamente já superaram totalmente a questão do acesso às tecnologias digitais, e já dispõem de acesso de qualidade à Internet há algum tempo, já substituíram, desde o final do ano passado, o currículo nacional de Tecnologias de Informação e Comunicação, por um novo, voltado à Computação. Na prática, as escolas não estão mais preocupadas com a integração das tecnologias digitais de informação e comunicação (TDIC) ao currículo, pois essa integração já aconteceu. A tecnologia já está presente de forma ubíqua, transparente, nas escolas. Os alunos já aprendem utilizando as ferramentas tecnológicas como meio, e não como fim.

Diante disso, e considerando o fato de que as tecnologias estão tão presentes no cotidiano das pessoas, gerando novas demandas, o governo decidiu criar um currículo que ajude a formar o pensamento computacional nos alunos desde a mais tenra idade. Aulas de programação, por exemplo, são introduzidas no currículo desde o Ensino Fundamental. Essa aulas permitem não apenas que os alunos produzam games e outras aplicações úteis, inclusive para a escola, como também desenvolvem o raciocínio lógico, a competência de resolução de problemas, o trabalho em equipe e outras competências importantes no século XXI. Está a filosofia de LOGO ressuscitando sob novas roupagens? Scratch não é um filhote de LOGO? Pelo menos nasceu no mesmo lugar…

Essa tendência já é observada tanto em países mais desenvolvidos, como aqui mesmo, no Brasil. E torna-se inevitável chamar a atenção para esse fato que é, no mínimo, curioso. Isso porque aquela discussão do início do século, sobre a concepção e o currículo da área de Tecnologia na Educação, retornou. E aparentemente ocorreu uma reviravolta. O currículo, digamos, mais tecnológico, tão criticado naquele contexto, adquiriu, hoje, ar de inovação. O uso da tecnologia como meio, como ferramenta de aprendizagem, transversalmente integrado ao currículo, saiu do foco. Agora volta-se a falar em aulas, mas não de informática (aplicativos como Office, etc.). Fala-se em aulas de programação ou de robótica (que também envolve programação), o que, na prática, está muito mais próximo das atividades antigamente centradas em LOGO do que da integração transversal das tecnologias ao currículo escolar. Volta-se a pensar em um currículo específico da tecnologia. Pergunto: estaria a escola de volta ao serviço da tecnologia? Acho que não, porque a aprendizagem da programação e da robótica tem componentes essenciais daquilo que há algum tempo se chama de competências do século XXI. Em outras palavras: a aprendizagem da tecnologia, na forma de programação e robótica, está a serviço de alguns dos objetivos mais básicos da educação do século XXI. .

Quem são os profissionais mais qualificados para esse novo papel da tecnologia na escola? Seriam os profissionais com viés mais pedagógico ou tecnológico? Como os professores de sala de aula lidariam com esse nova visão do papel da tecnologia na educação escolar? Essa nova visão contribui para a implementação do currículo escolar ou concorre ele, que já é tão inchado, com tanto conteúdo para ser ministrado em tão pouco tempo? Será que essas competências do século XXI, que podem tão bem ser desenvolvidas com o apoio e a ajuda da tecnologia, devem constar do currículo geral da escola, ou devem ser inseridas em, digamos, um currículo opcional — um “currículo extracurricular”, se isso não soasse autocontraditório?

Enquanto as TDIC ainda não estão totalmente integradas às salas de aula no contexto brasileiro, enquanto ainda há professores imigrantes digitais, que não se sentem totalmente confortáveis com o uso das tecnologias, especialmente no contexto pedagógico, ainda será necessária a presença de um profissional da área de tecnologia na educação, com qualificações pedagógicas, mas atuando como um parceiro mais experiente no uso pedagógico das tecnologias. E o modelo mais eficaz de trabalho desse profissional certamente não é o das antigas aulas de informática, em laboratórios, em encontros semanais somente com os alunos, sem um professor regular, mas, sim, deve envolver os momentos de planejamento, o apoio à produção de recursos de aprendizagem, a formação em serviço, e também, os momentos de sala de aula, junto com os alunos, como um parceiro de fato.

Por outro lado, caso se entenda que o currículo tecnológico, ou computacional, é realmente imprescindível para a formação de todos os alunos, talvez seja necessário se pensar em aulas específicas, na grade curricular, em vez de um “currículo extracurricular”. Essas aulas poderiam ser de programação, de robótica, de produção de games, ou, até aulas de prototipagem, da chamada maker culture, com viés de engenharia. Poderiam, também, incluir elementos de protagonismo e empreendedorismo. Entretanto, os profissionais mais qualificados para esse segundo eixo do trabalho de tecnologia na educação talvez seja mais tecnológico (programador, web designer, engenheiro, etc.), sem dispensar uma formação na área de educação, como licenciatura, a exemplo do que ocorre com os demais professores especialistas da educação básica, tanto do Ensino Fundamental II, quanto do Ensino Médio.

Em Salto, 17 de Abril de 2015.

O Dia em que Desenvolvi Minha Consciência Negra

No inverno de 1991, aos dezesseis anos, vivi doze horas que mudaram completamente minha visão de mundo em relação ao racismo, discriminação e preconceito.

Eu morava em Ubatuba, naquela época, e vim passar uma semana em São Paulo, na casa de algumas tias. Minha primeira parada foi na casa da querida tia Josira, mãe dos meus primos Helder Celso e Moises da Rocha Filho. Naquele tempo eles faziam parte de um grupo de samba, chamado Pé de Moleque. Recentemente o Pé de Moleque voltou a se apresentar, depois de anos separados.

Na época havia oito integrantes no grupo, todos jovens, amigos, pessoas realmente muito bacanas e queridas! Todos negros… Meus primos, filhos do famoso Moises da Rocha (d’O Samba Pede Passagem, da rádio USP), também são negros, embora filhos de mãe branca. Naquele tempo o Pé de Moleque se deslocava de ônibus para fazer seus shows…

Eles se apresentariam em duas casas naquela noite fria de Julho. Uma em Moema, e outra no Ipiranga. Não me lembro os nomes das casas… Acho que a do Ipiranga se chamava “Tulipão”, ou algo do gênero. Saímos em um grupo grande: os oitos integrantes, a namorada de um deles (também negra), a mulher do meu primo, Sandra (branca) e eu, além da minha tia e, acredito, minha “priminha” Tatiane, que na época devia ter uns sete aninhos (hoje já é uma mulher, e cada vez mais linda).

Procuramos algum lugar para comer antes da apresentação. Passamos na porta de alguns restaurantes em Moema, e foi aí que minha experiência surreal teve início.

Os restaurantes mais bacanas ainda estavam meio vazios, pois era relativamente cedo. Mas quando chegávamos com um grupo de aproximadamente doze pessoas, sendo a grande maioria de negros, ouvíamos dos maîtres que os restaurantes estavam lotados… (Lotados?!?!?!). Ao serem questionados sobre as mesas vazias eles diziam simplesmente que estavam todas reservadas… Demorei a acreditar que era porque “éramos” negros… Mas chegou uma hora, depois de algumas tentativas, que ficou evidente… Acabamos comendo um lanche no próprio barzinho onde eles iam se apresentar…

Saímos de lá e fomos para o Ipiranga. Acho que minha tia e minha prima não foram para essa segunda casa. Estava ficando tarde… Seguimos apenas os integrantes da banda, e as três mulheres… Eles tocaram até umas 3h ou 4h da manhã. Em seguida saímos, de madrugada, para pegar o ônibus perto do Museu do Ipiranga. Após esperar um pouco o ônibus passou, relativamente vazio. Fizemos o sinal. Mas ele passou reto… Mais uma vez fiquei surpresa e sem entender o que havia acontecido. Por que o ônibus não teria parado? Estava vazio! Era madrugada! Estávamos no ponto esperando por ele!

Após a cena se repetir por umas duas vezes, entendi, mais uma vez, a razão de não haver espaço para nós no ônibus… Resolvemos, então, “enganar” os motoristas… Os oito rapazes se afastaram da calçada, ficando meio escondidos em baixo da cobertura do ponto de ônibus, e as três meninas, sendo duas brancas, fizeram sinal. O ônibus parou. Quando começamos a subir as escadas, os rapazes foram saindo da cobertura do ponto e caminhando em direção ao ônibus. Surpreendentemente, o motorista, simplesmente, tentou arrancar, mesmo com a gente pendurada na porta, subindo os degraus. Havia um policial dentro do ônibus. Ele já colocou a mão em sua arma e caminhou em direção à porta para “proteger” os poucos passageiros que estavam no ônibus, de nós! Começamos a dizer que só queríamos entrar no ônibus, que outros já haviam passado e não haviam parado, que não podíamos ser impedidos de entrar no ônibus só por causa da… “nossa”… cor…

O policial, ainda desconfiado, mandou o motorista manter a porta aberta para que todos nós entrássemos. Ficamos sentados no fundo, sob a mira daquele policial. Como se fôssemos uma ameaça à sociedade…

Chegamos no ponto que queríamos, em alguma estação de metrô. Uma parte do grupo foi embora, sentido metrô Conceição, onde morava a maioria. Meu primo Helder Celso, seu amigo Marcelo Nikimba e eu pegamos o metrô no sentido do centro. Íamos dar uma esticada na noite…

Esperamos o metrô começar a funcionar. Descemos na estação Anhangabaú e fomos até uma casa de shows, cujo nome, eu também não me lembro… Ao chegarmos lá meu primo bateu na porta e foi logo recebido com um largo sorriso por um senhora negra, cuja simpatia desapareceu tão logo ela notou minha presença. Notei, então, que lá só havia negros. Nenhuma pessoa branca, a não ser eu. Meu primo justificou minha presença, dizendo que eu era prima dele, mas nem o prestígio dele foi suficiente para convencê-la. Ela me mediu da cabeça aos pés e logo encontrou uma razão para barrar minha entrada. Estávamos todos muito próximos, em pé, ao lado dela, e ela olhou bem para o rosto do meu primo e disse: “ela não pode ficar aqui, pois esta noite está acontecendo o baile dos anos 30 (ou 20), e só podem entrar pessoas… calçando sapatos”. Eu estava de tênis. Tentei olhar se havia mais alguém de tênis, mas não consegui. Fiquei constrangida. Ela se referiu a mim como se eu nem estivesse presente, ouvindo cada palavra que saia da boca dela. Depois de haver sofrido a discriminação por estar em um grupo de negros, naquele momento estava sendo discriminada por ser branca. Tive que aceitar.

Saímos de lá e fomos para uma outra casa. Na entrada meu primo explicou para o recepcionista que eu era prima dele. O sujeito me mediu, deu uma risada e disse: Ahã… Sua prima… Ok, pode entrar.

Nossa noite acabou animada e tranquila. Animada ao som da cantora Lecy Brandão. Tranquila porque havíamos sobrevivido a todo tipo de agressão, e ainda estávamos felizes, curtindo nossa juventude, a música e os laços de família, cujo sangue é sempre vermelho, e não preto ou branco…

Depois dessa noite, nunca mais consegui achar graça em piadas racistas.

Obrigada queridos primos, Helder e Moiseizinho… Talvez vocês não saibam disso, pois eu nunca contei essa história antes, a não ser em privado, para algumas poucas pessoas. Mas vocês mudaram minha vida…

Carta de honra e gratidão – Aos meus pais Ana Maria e José Machado

Queridos pai e mãe…

Há mais de dez anos fiz um curso na Igreja onde aprendi sobre uma tradição do povo judeu de escrever uma carta de honra a pessoas importantes em sua vida.

Desde então decidi que escreveria uma carta de honra a vocês. Procurei imaginar uma data especial em que eu entregaria essa carta, como uma celebração de Bodas, ou outra ocasião em que pudéssemos reunir o maior número possível de parentes e amigos, para que eu pudesse honrá-los diante dessas pessoas que são importantes a vocês.

Sinceramente eu não sei que tantas coisas me mantiveram ocupada nos últimos dez anos, mas o fato é que eu nunca cumpri o que havia decidido.

O tempo nem sempre é generoso, e, às vezes, o adiamento de planos significa a impossibilidade de concretiza-los. Mas, felizmente, o tempo está sendo generoso comigo, e está me dando uma oportunidade de escrever esta carta a vocês hoje.

Com o advento das redes sociais, eu não preciso mais de um evento para ter a oportunidade de reunir uma grande quantidade de familiares e amigos. Hoje estamos todos conectados. Por isso esta carta é pública.

Sou muito grata a Deus por Ele ter me escolhido para ser filha de vocês dois. Tenho lembranças sempre muito felizes ao lado de vocês.

Lembro-me da Dora, nossa vizinha, certa vez me dizer que eu era privilegiada, pois eu nunca ouvia meus pais brigarem um com o outro. Realmente… É até difícil imaginar como deve ser difícil ser criança em um lar onde os pais vivem em pé de guerra… Imagino que vocês tivessem os desentendimentos de vocês, mas acho que a hora do banho era a hora de acertar as contas, de forma discreta, sem expor os filhos a conflitos que pertenciam só a vocês. Obrigada por esse cuidado.

Sei que a vida não foi fácil para vocês, mas sei o quanto vocês se dedicaram para nos proporcionar uma vida confortável, com direito a realização de sonhos…

Lembro-me dos presentes do “Papai Noel”, em que escolhíamos na vitrine de Natal do Mappin aquele que era o desejo do nosso coração, e vocês não mediam esforços para atende-lo, parcelando, muitas vezes, durante um ano inteiro o pagamento daquele sonho…

Adorava ser surpreendida durante a madrugada, quando dormia na minha cama, e acordava dentro do carro, indo viajar para alguma praia ou camping, vendo o sol nascer na estrada. Vocês nos carregavam com carinho, mesmo quando já éramos bem pesadas (hoje eu sei que filhos não são leves como plumas… ). E ainda hoje eu posso ver o brilho nos olhos de vocês ao ver nossa alegria naqueles momentos… Isso é amor.

E as cantorias? Foram tantos momentos felizes, cantando um repertório delicioso de músicas, no carro ou na banheira: “Aqui vive alegre pessoal, família bem original, um pai, uma mãe, uma irmã, outra irmã, e o bebê tão miudinho e gentil…”, “O mundo gira depressa, e nessas ondas eu vou…”, e por aí vai…

Lembro-me de alguns momentos difíceis, quando você, mãe, arrumava formas de ganhar dinheiro, vendendo roupas usadas, vendendo produtos de catálogo “Stanley”, e tantas outras situações de sacrifício. Você também, pai, sempre se esforçou em seu trabalho, e às vezes, em seu próprio negócio, como o Lava-Rápido onde eu passava as minhas tardes, tentando adivinhar qual era o carro que ia passar, só pelo som do motor dele se aproximando… Tudo se tornava divertido quando estávamos juntos.

Hoje, mais do que nunca, eu sei o que representou para você, mãe, parar de trabalhar durante dez anos, só para cuidar de mim e da Patricia. Quero que saiba que sou muito grata a você por isso. Tive o privilégio de estar com você em minha primeira infância. Um momento tão importante para a formação de valores… Tenho tanta consciência da importância disso, que procurei fazer o mesmo pelas minhas filhas…

Lembro-me quando, no final do dia, resolvíamos fazer uma surpresa para o pai quando ele estava chegando do trabalho. Colocávamos três bonecas na cama, no lugar em que costumávamos ficar sentadas, e nos escondíamos… Ele, então, entrava em casa e dava de cara com as bonecas, e nós três aparecíamos e dávamos muita risada…

Mesmo depois que você voltou a trabalhar, estava sempre por perto, cuidando da gente… Sempre admirei sua capacidade profissional. Além de pontual, você sempre foi muito responsável com as atribuições inerentes ao seu trabalho. Aprendi sobre isso com você.

Com você, pai, aprendi que a vida precisa ser leve… Não faz sentido passar a vida longe da família, sob o pretexto de que temos de prover as necessidades da própria família. Nossa presença é mais importante. E você sempre foi muito presente.

Sempre me orgulhei de você, por ser uma pessoa divertida, bem humorada, e muito inteligente. Quando você passou duas vezes em primeiro lugar no concurso do Banco do Brasil em Ubatuba, você só mostrou para as outras pessoas isso que eu já sabia. Você é uma pessoa com a qual se pode conversar sobre qualquer assunto, e eu admiro muito isso em você…

Quando eu vejo o quanto meus primos gostam de você, eu penso como sou privilegiada por ser sua filha, e por poder conviver com você muito mais do que eles.

Você é, também, um exemplo de generosidade, pai… Quantas vezes você via uma família num ponto de ônibus, quando um temporal estava se armando, e parava, convidava as pessoas para entrar no carro (às vezes um fusquinha que mal comportava nós quatro), eu e a Patricia nos espremíamos no “bauzinho” de traz, e você levava a família até a porta de sua casa, que muitas vezes era totalmente fora da nossa rota. O que movia você a fazer isso, senão o amor e a generosidade?

Pai e mãe, vocês me ensinaram valores muito importantes, que fazem parte de mim, sem os quais eu não me reconheço. Justiça e honestidade, bondade e responsabilidade, amor e respeito, humildade e esforço são alguns deles. Obrigada por me ensinar, não com palavras, mas por meio do exemplo de vida de vocês, essas coisas.

Mas o melhor presente que vocês me deram, que eu considero a herança que vocês já me deixaram em vida, é a fé e o temor a Deus. “Ensina a criança o caminho que deve andar e ainda quando for velho, não se desviará dele.” Provérbios 22:6.

Vocês levaram esse versículo a sério… Quantas vezes pegamos o ônibus na Dutra e depois o metrô, para ir até a igreja, ou na Metodista da Água Fria, ou na Metodista Central… O convívio com a palavra de Deus fez toda a diferença em nossa formação… Apesar das falhas e limitações, se hoje estou de pé, acolhida pelo amor de Deus, é graças às sementes que vocês possibilitaram que fossem plantadas no fundo do meu coração. Obrigada!

Quero que saibam que eu amo vocês, e tenho o maior orgulho de carregar os sobrenomes Epprecht e Machado. Quero que saibam que eu me preocupo com vocês e sinto-me impotente, muitas vezes, pois gostaria de estar mais perto para ajuda-los quando vocês precisam de ajuda.

Que Deus os abençoe cada vez mais…

Beijos…

Paloma

Em São Paulo, 31 de Agosto de 2014.

[Publicado originalmente, no Facebook]