Há (dois) ano(s) uma utopia se tornava realidade…

Escrevi esse relato em forma de post no Facebook há exatamente um ano, em 2018, quando fazia um ano que eu havia passado na seleção do Doutorado em Educacão da USP. Hoje o Facebook me trouxe essa memória, e achei que o relato merecia vir para meu Blog.

Primeiro por se tratar de uma passagem autobiográfica significativa para mim. Segundo porque pode servir de inspiração para outros jovens e adolescentes que, assim como eu, não nasceram com a vida ganha, e por sua desvantagem na largada, terão de correr mais se quiserem cruzar a linha de chegada…

Na corrida do conhecimento, como diz o querido Nilson José Machado, diferentemente da corrida do mercado, não existem restrições quanto ao número de vencedores. Todos aqueles que enfrentarem e superarem suas próprias limitações, sejam elas internas (biológicas, psicológicas, espirituais), sejam elas externas (sociais, ambientais), cruzarão a linha de chegada e receberão o seu merecido prêmio. Isso porque o prêmio dessa corrida não é limitado ou finito, como o dinheiro, ou as riquezas de um modo geral, mas é ilimitado e infinito. O conhecimento não precisa ser dividido entre os vencedores. Mas, ao ser partilhado, ele ainda se multiplica…

É verdade que, no caminho, precisaremos da ajuda de muita gente. Dificilmente venceremos sozinhos essa corrida. Mas se não corrermos, ninguém correrá por nós. Então, faça a sua parte, e agarre cada oportunidade que surgir em sua vida com as quatro mãos!


Quando publiquei esse post, no ano passado (2017), queria ter escrito um textão autobiográfico, mas estava tão, mas tão extasiada, que não tive condições emocionais de escrever mais nada além de “Doutoranda na USP!”.

Hoje, celebrando o primeiro aniversário desse dia histórico em minha vida, vou gastar alguns minutos para tentar escrever o que eu não consegui antes.

Fui a primeira pessoa da minha família a concluir o Ensino Superior. E não foi em uma universidade pública, pois seria esperar demais de uma pessoa que estudou a vida inteira em escolas públicas, estaduais, e que sequer cursou o Ensino Médio regular (antigo Propedêutico), uma vez que optou por fazer um curso técnico.

Indecisa entre Técnico em Enfermagem e Magistério, acabei optando pela segunda alternativa, muito inspirada nas brincadeiras de infância, de professora das minhas amiguinhas lá no Parque CECAP, em Guarulhos, onde vivi até os 12 anos de idade. Essa escolha excluiu de minha formação as disciplinas de Química, Física, Biologia e até mesmo a Matemática de nível Médio, a não ser por uma introdução que era oferecida no primeiro dos quatro anos do Magistério, tentando garantir uma base mínima dessas disciplinas a todos os estudantes. Todos os conteúdos que deixei de conhecer na escola eram exigidos nos vestibulares de todas as faculdades, creio que muito mais até do que hoje em dia… Meu finado amigo Alexandre, carioca esperto, de Madureira, Engenheiro Naval formado pela UFRJ e colega do meu pai no banco onde ele trabalhava, ainda se dispôs a me ajudar com esses conteúdos (com exceção de Biologia), mas, apesar dos estudos com ele, muitas vezes no quiosque da praia, em Ubatuba, onde morei na adolescência, eu sabia que não seria fácil…

Sinceramente, a inscrição no vestibular da USP foi apenas para cumprir tabela. Achei, mesmo, que seria muita areia para o meu caminhãozinho… Qual não foi minha surpresa quando eu percebi que, se eu tivesse me inscrito em Pedagogia nessa que foi a única universidade pública para a qual prestei vestibular, teria passado, pelo menos, para a segunda fase. No entanto, como se não bastassem todos os percalços que passamos durante nossa escolarização, a maioria de nós ainda costuma viver a crise de não ter um projeto de vida aos 17 anos, quando temos que tomar decisões que nos são apresentadas como decisivas para o nosso futuro. A verdade é que eu estava indecisa entre Direito e Pedagogia. O Direito surgiu por incentivo de pessoas próximas que achavam que eu era eloquente e tinha boa capacidade de argumentação, o que me ajudaria a ser uma boa advogada. Além disso, professora (já) era uma profissão tão desvalorizada… Na verdade, a sociedade sempre acaba pressionando a gente a escolher aquilo que ela idealiza como sendo a melhor profissão, em outras palavras, o que vai proporcionar mais estabilidade financeira e que vai possibilitar que a gente seja mais respeitada. Quanta bobagem…

Eu não tinha dinheiro para ficar prestando vestibular em tudo quanto é lugar. Então, além da USP, escolhi outras duas instituições privadas (sem saber como eu poderia pagar as mensalidades, caso viesse a passar). Na USP eu não podia escolher duas opções em áreas diferentes. Então escolhi só Direito. Na FMU e no Mackenzie, pude escolher tanto Direito quanto Pedagogia. Para decepção da minha querida professora de Língua Portuguesa do Magistério, Helô (uma lenda viva em Ubatuba), não entrei na USP, onde ela tinha certeza de que eu conseguiria. Mas, como prêmio de consolação, passei em Pedagogia nas outras duas. No Mackenzie o curso era vespertino, o que limitaria minhas possibilidades de arrumar um trabalho para sobreviver. Além disso, a chance de eu conseguir uma bolsa era muito remota, pois só havia bolsas próprias da Universidade, e eu fui informada de que, normalmente, apenas pessoas ligadas à Igreja Presbiteriana (especialmente filhos de pastores) ou outros casos muito excepcionais, conseguiam essas bolsas. Na FMU, além de o curso ser noturno (o que me abriria mais possibilidades de arrumar um trabalho), eles ofereciam o chamado Crédito Educativo (do governo FHC). Felizmente, em pouco tempo consegui tanto o trabalho, quanto o financiamento, além da ajuda preciosa de muitos amigos que ora me cediam uns vale-transportes, ora uns vale-alimentação, além de ajuda para outras despesas. A moradia, que seria o mais difícil, eu consegui pela generosidade da minha tia Josira, que abriu as portas da casa dela, onde sempre cabe mais um. Sou grata não só a ela, mas aos meus primos Moises, Helder e Tati por terem me aturado por seis meses na casa deles. Assim, deixei a casa dos meus pais em Ubatuba com um cheque do meu pai para pagar a primeira mensalidade, e passei a cuidar de minha vida a partir dali.

No final do primeiro ano da faculdade acabei me casando e, quando cursava o terceiro ano, tive minha primeira filha. Em seguida, tão logo concluí a faculdade, tive a segunda filha, e assim uma possível carreira acadêmica foi interrompida por tempo indeterminado.

Na verdade eu nem almejava uma carreira acadêmica. Na verdade, mesmo, eu nem sabia se seguiria carreira na área da educação. Decepcionada com a área, e acreditando que eu não tinha a menor vocação para trabalhar ali, passei alguns anos sendo exclusivamente mãe, e depois fui trabalhar em uma pequena empresa de tecnologia que tive com me ex-marido, onde, apesar de trabalhar na área administrativa, acabei aprendendo bastante sobre informática, tendo me tornado uma usuária mais avançada do que a maioria das pessoas que eu conhecia no uso de tecnologias. Poucos anos depois passei em um concurso na Prefeitura de São Bernardo do Campo, e aos 25 anos tomei aquela decisão que as pessoas achavam que eu tinha que ter tomado aos 17 anos. Finalmente eu tinha um projeto de vida! Escolhi a educação. Descobri que eu poderia contribuir para o mundo ser um lugar melhor se eu ajudasse as pessoas a se transformar por meio da educação.

Comecei trabalhando nas séries iniciais da educação básica, e, em seguida, passei a trabalhar com o uso de tecnologias na educação, inclusive com formação continuada de professores para o uso pedagógico das tecnologias. Essa experiência acendeu em mim o desejo de, futuramente, trabalhar na formação inicial de professores. Mas, infelizmente, esse era um futuro muito distante, pois, como já não havia mais o curso de Magistério, para trabalhar nessa área eu precisaria cursar uma pós-graduação, e se uma especialização parecia difícil, um Mestrado e um Doutorado pareciam impossíveis. Uma utopia…

Mais de doze anos se passaram desde que eu terminara minha graduação. Minha vida passou por transformações profundas e radicais (algumas até traumáticas), mas, finalmente, o Mestrado estava acontecendo, graças ao incentivo e apoio do meu parceiro de vida, Eduardo Chaves. E não era em uma instituição qualquer. Era na PUC-SP, uma universidade tão bem conceituada, mas que eu nem cogitei estudar na graduação (apesar da insistência de outras duas professoras importantes em minha vida, a Malu Borim e a Sonia Bomfim, também do Magistério), porque sabia que não teria recursos para pagar as altas mensalidades… E como se não bastasse estar na PUC, ainda tive o privilegio de ser orientada pelo Prof. Fernando Almeida, que eu tanto admirava.

Descobri que é verdade que o Mestrado dói. A gente tem de aprender tanto, em tão pouco tempo, que me parece impossível sobreviver a ele sem muito sofrimento. Mas, enfim, eu sobrevivi. E a dor foi tão forte, que eu não quis nem pensar em fazer Doutorado. Como eu trabalhava em escola de educação básica, onde esse tipo de título acadêmico nem é tão valorizado, estava satisfeita com o Mestrado.

Entretanto, a vida, que não para, deu mais algumas voltas, e aquele sonho de trabalhar com formação inicial de professores se tornou realidade no IFSP. Nesse contexto, o Doutorado passou a ser algo importante dentro da minha nova carreira. E assim, três anos após concluir o Mestrado, passei a sonhar com o Doutorado. Mais uma vez com o incentivo e apoio do meu marido e melhor amigo, escrevi e submeti um projeto. No entanto, em minha primeira tentativa, não passei no exame de proficiência em inglês… Imaginei que minha dificuldade seria a aprovação do projeto, mas, enfim, foi no inglês que meu sonho ruiu…

Foi bem difícil lidar com a frustração. Eu estava em uma fase da vida em que parecia que tudo que eu fazia, prosperava. Eu havia acabado de passar em um concurso concorrido no IFSP, em que havia uma única vaga! Um trabalho escrito com duas amigas acabara de ser aceito em um congresso em Portugal. Uma proposta para ministrar uma oficina de Design Thinking para Educadores, pela Pró- Reitoria de Ensino do IFSP, havia sido selecionada. Mas quando a autoestima da gente fica abalada, não importa tudo o que fizemos até ali. A única coisa que conseguimos pensar é que somos um fracasso, mesmo. Que era muita pretensão minha querer entrar justamente naquela universidade pública na qual eu não havia conseguido cursar nem a graduação. Quem era eu para querer aquilo? Fora isso, tinha o peso da expectativa das pessoas que me cercam… O marido tinha certeza de que eu conseguiria. As filhas. Os amigos. A família… Que difícil carregar tanta expectativa nos ombros!

Ao longo daquele ano, no entanto, tive a felicidade de experimentar muitas coisas boas junto aos meus alunos e colegas do IFSP. Nesse processo nasceu o projeto de inovação da Licenciatura em Química, do IFSP Capivari. E esse projeto me fez voltar a sonhar… No ano seguinte mexi um pouco no projeto que eu havia submetido no processo anterior da USP (e que nem chegou a ser apreciado), incluindo coisas que eu havia aprendido de forma tão significativa ao longo daquele ano. Criei coragem, e tentei outra vez. Com muito mais humildade. Com muito menos expectativas…

E, então, aconteceu…

Meu projeto foi aceito pelo Prof. Ulisses Araujo, alguém que eu não apenas admirava, mas com quem havia aprendido tanto em suas aulas de Psicologia de Educação, ao lado da Profa. Valeria Arantes, no Canal da UNIVESP, em minha preparação para ministrar aulas de Psicologia da Educação no IFSP.

Enfim, foi um sonho, dos grandes, que virou realidade diante dos meus olhos, a essa altura, quase incrédulos… Quase, porque no fundo eu sou uma otimista inveterada e sempre acabo acreditando que coisas boas podem acontecer. Se eu fosse totalmente incrédula, talvez nem tivesse tentado outra vez, né? Mas tentei. E deu certo.

Apesar de eu ser grata a Deus e a todas essas pessoas que mencionei nesse textão, e a outras pessoas que fizeram parte da minha história, me fazendo ser quem eu sou, hoje eu dedico essa conquista à minha professora Helô. Ela foi a primeira a ter tanta certeza de que eu estudaria na USP (e sua decepção lá em 1993 deixou isso bem evidente), que plantou em mim a semente que, a seu tempo, deu o seu fruto. Obrigada, Helô. Não sei se essa mensagem vai chegar até você, mas a minha gratidão é imensa.

Paloma Chaves

Em Salto, 10 de Julho de 2019.

Um comentário sobre “Há (dois) ano(s) uma utopia se tornava realidade…

Deixe um comentário